Kenia 06/02/2022"Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E contudo, as pestes, assim como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas."
Em "A Peste" de Albert Camus, primeiro os ratos começam a morrer em Oran, Argélia. Os ratos mortos estão por toda parte, nas ruas, nos degraus das portas, nos porões. Depois os ratos param de morrer, e todos suspiram de alívio, alívio esse que não perdura muito já que algumas pessoas começam a morrer de maneira semelhante.
As pessoas da cidade ficam confusas no início quanto ao que está acontecendo, mas só se incomodam com a sujeira e pedem imediatamente que as autoridades façam algo a respeito. Porém, quando as pessoas começam a morrer, o governo adota uma atitude de "esperar para ver" ao invés de alarmar o público. O Dr. Rieux, nosso protagonista, pede que medidas imediatas sejam tomadas, solicitando uma vacina, pois teme que a doença possa matar metade da cidade. Sua principal preocupação é salvar o maior número de vidas possível.
"Havia os sentimentos comuns, como a separação ou o medo, mas continuavam a colocar em primeiro plano as preocupações pessoais. Ninguém aceitara ainda verdadeiramente a doença."
Isto mostra o poder da indiferença e da negação presentes na cidade, a praga metafórica do romance. Somente quando as coisas tomam maiores proporções e os cidadãos se tornam prisioneiros da peste sob quarentena total, é que eles percebem quão pouca prioridade deram às coisas que mais lhes importavam, sugerindo que é questionável se eles eram realmente "livres" antes da peste.
É nesse momento que o romance lida especificamente com o impacto emocional e psicológico que a peste tem sobre os cidadãos. Muitas pessoas na cidade ficam inquietas, outras recorrem à festas sem hora para acabar, e muitos caem em profundas depressões.
Acompanhamos especificamente um grupo de homens unidos para derrotar a peste assim como afastá-la de si mesmos. Há o melancólico Cottard; o escriturário perfeccionista Joseph Grand; o juiz Othon; o padre Paneloux que critica ferozmente a negligência do povo de Oran e adapta seu sermão para ajudá-los a encontrar a paz; o jornalista Rambert que estava só de passagem pela cidade e acaba sendo encurralado pela peste; o Dr. Rieux, o médico que busca tratar o máximo de pessoas enquanto sua esposa está doente em um sanatório fora da cidade, e Jean Tarrou, um ex-combatente republicano espanhol que sai de casa por abominar a pena de morte e que cria uma força voluntária para derrotar a peste.
A Peste lida especificamente com um surto de doença em uma pequena cidade - e não uma pandemia global. Camus inclui algumas informações médicas sobre a peste: seus sintomas e propagação. Mas o livro é mais sobre como os personagens reagem sob imenso estresse. Ele mostra que somos, em sua maioria, impotentes contra a força bruta da natureza. Alguns dos personagens falam de Deus e da religião, mas a maioria deles tenta buscar sua própria determinação para lidar com os terrores da doença.
"O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade. Os homens são mais bons do que maus, e na verdade a questão não é essa. Mas ignoram mais ou menos, e é isso que se chama virtude ou vício, sendo o vício mais desesperado o da ignorância, que julga saber tudo e se autoriza, então, a matar."
Em quase toda a história, foi assustador ler e perceber que o que eles passaram em Oran é bem semelhante ao que estamos passando desde 2020. Quer se trate de desinformação, exagero, estocar e acumular coisas, exploração, etc. É... infelizmente o ser humano nunca muda. Outra coisa é que o tema morte nunca é fácil, nem mesmo para um médico que podemos erroneamente presumir estar mais do que acostumado a isso. E que, quando tudo mais falha, há sempre uma força maior a quem todos nós podemos recorrer.
Bom, se você está à procura de um livro feliz, infelizmente não é este. É sombrio, desanimador, e pode colocá-lo em uma crise existencial. Caso decida embarcar nessa leitura, esteja alertado. Os personagens de Camus tentam dar sentido a suas vidas miseráveis, mas sua resistência contra a peste é um tentativa inútil. Só que embora seja um romance sombrio, A Peste também é estranhamente edificante assim como os romances existenciais podem ser. Nada importa depois da morte, mas isso não significa que a vida não possa ter sentido, um sentido ganho através do amor e da bondade de uns para com os outros.
"O bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada, E saiba, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz."