sr. felix 04/03/2022
"Mas o que quer dizer isso, a peste? É a vida, nada mais."
Uma cidade pacata é invadida por ratos que morrem aos montes nas ruas. A morte dos ratos dissemina uma peste tortuosa que cresce paulatinamente os níveis de infecção e mortalidade. Uma réstia de homens insatisfeitos se levantam para combater este mal, e tal decisão ergue a coragem da sociedade para juntar-se à luta. Os esforços coletivos foram eficientes em certa medida, diminuindo o suplício de alguns e refreando o galgar indolente da doença. Mas não será surpresa anunciar que a peste vai assim como veio. Cansada de tripudiar sobre a dor e a impotência dos homens, foi ela mesma, a peste, quem tomou a decisão de partir. Mas a precipitação do anúncio não estraga a experiência da leitura, meus caros. Longe disso! Mais importa saber que neste livro o crepitar do desespero e o cheiro acre da morte arrasta-se lentamente através das páginas, toca os dedos do leitor com amargura e sussurra impiedosamente as obscenidades do sofrimento.
Orã, para além de uma cidade, é a representação do próprio mundo. Ainda nas primeiras páginas o narrador nos apresenta uma singularidade dessa cidadezinha que não se restringe somente a ela, mas que é um fato universal: "Em Orã, como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber". Acomodados numa vida em que as futilidades suplanta a deliberação, eles e nós vivemos sem saber por que amamos o que amamos. E é no instante tardio, quando a peste isola a cidade com seus habitantes, causando separação entre os seres amados, só aí, no degredo do objeto de sua afeição, é que a reflexão desprezada chega em forma de angústia. Além disso, em qualquer lugar onde o pensamento sobre o amor é negado, certamente a ideia da morte também será banalizada. E é aí que está, ao menos para mim, a essência do livro. Esquecemos que já nascemos contaminados. Ou fazemos de tudo para esquecer. Todo ser humano é um empestado. A peste é o existir. Existir e saber que deixará de ser. Talvez lutar contra ela seja o nosso objetivo. Mas, convenhamos, não é esta uma luta que já se inicia perdendo?