Fernando Lafaiete 23/01/2019Dom Casmurro: A psicologia literária Machadiana como forma de questionamento do ser que chamamos de humano.******************************NÃO contém spoiler******************************
É com a pena na mão, a alma no passado e o corpo no presente, que o perturbado protagonista, a versão Machadiana de Otelo de William Shakespeare, começa a narrar sua história de vida. Uma narração parcial, subjetiva e, portanto, nada confiável. A intenção? Expor os fatos que o levaram ao estado em que se encontra no presente. Atar as duas versões de si e se libertar do que lhe atormenta. Com apresentações e argumentos “racionais”, Dom Casmurro tece uma teia, como uma aranha, e te envolve em um lema que mesmo após o lançamento da obra em 1899, ainda nos perturba. Afinal de contas: Capitu traiu ou não traiu Bento Santiago?
O enigma criado pelo protagonista tem a intenção de nos levar a um estado de desconfiança extrema, onde nos vemos presos em um labirinto no qual não conseguimos sair. Ou como Borboletas em estado primitivo, presos em um casulo que se nega a rachar. Somos manipulados e mergulhamos nas palavras muito bem escolhidas pelo narrador. Um mar de loucura ou de sensatez, deixo tal escolha a sua decisão. Dom Casmurro não passa de um ser doente que caminha sobre a terra, não tendo mais condições de viver. Vive e sobrevive como uma alma penada presa ao passado. Ou seria ele um homem injustiçado, traído tanto pela esposa quanto pelo melhor amigo?
“O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi e nem o que fui. ”
O importante é sabermos que Dom Casmurro é uma obra-prima com foco no ciúme. O verdadeiro mote central que deixa a sombra até mesmo os tido protagonistas. Não se trata de uma narrativa com foco na traição. A traição é apenas uma suposição feita por Casmurro e sustentada pela maioria dos leitores. Podemos embarcar na verdade que nos é entregue ou podemos questionar sua veracidade. Tudo vai de analisarmos e decidirmos se os discursos articulados por aquele que Machado de Assis criou, são fortes o suficiente para nos persuadir. Podemos acreditar no que no que nos é entregue e assim nos tornarmos os verdadeiros Casmurros, ou podemos deixar esta adjetivação apenas a Bento Santiago, a quem verdadeiramente lhe serve este vocábulo.
São várias as interpretações e teorias aplicadas à obra. Seria Dom Casmurro um romance focado no homoerotismo? Não seria Bentinho apaixonado por Escobar (seu melhor amigo) e impossibilitado moralmente e socialmente de seguir com esta paixão, projetado tal imaginação em uma suposta relação clandestina entre sua esposa e seu melhor amigo? Esta teoria ganhou força com uma publicação detalhada publicada por Rosa de Nagasaki, uma usuária do Twitter no dia 9 de Novembro de 2018. Porém, já é uma teoria bastante antiga e já levantada por várias outras pessoas. Encontrei questionamentos do tipo que remontam desde 2007. Dom Casmurro seria na verdade gay e a injustiçada na verdade seria Capitu. O avesso do que a obra te faz querer acreditar.
“Os olhos de Escobar eram dulcíssimos (…) Realmente era interessante de rosto, a boca fina e chocarreira, o nariz fino e delgado”
“Apertei as mãos de Escobar, foi uma total ausência de palavras, assinamos o pacto. Elas vieram depois, de atropelo, afinadas pelo coração. ”
“Ia alternando casa e seminário. Os padres gostavam de mim. Os rapazes também, e Escobar mais do que os rapazes e os padres. ”
Capitu... Ah Capitu!!. A figura emblemática que possuía olhos de cigana oblíqua e dissimulada. A personificação feminina de Casmurro, venerada por muitos e criticada ainda mais pelos Casmurros, que alimentam a certeza de sua infidelidade. Seja caçando pistas de sua suposta traição através da obra original, através de sua adaptação em minissérie ou através da quadrinização de Ivan Zaf, a certeza que temos é que não temos certeza. O quebra cabeça nunca é totalmente montado independente de onde você procure peças para completá-lo. Dom Casmurro foi concebida como uma obra dúbia e permanecerá assim até o fim dos tempos. A genialidade de Machado de Assis é tanta, que o mistério criado por ele causa uma rixa entre os mais diversos tolos intelectuais que tentam desvendá-lo.
Uma obra atemporal, onde o ciúme, o pai da loucura, domina a narrativa e nos deixa pensativos. Até que ponto temos controle de nossa consciência? Até aonde conseguimos nos manter sãos, e a partir de que momento perdemos a noção de que somos seres racionais, passando a distorcer a realidade a fim de alimentar nossas incertezas? Dom Casmurro é mais uma obra que sacramenta a importância reflexiva da literatura psicológica. O tipo de literatura que nos desafia a desvendar as camadas psíquicas que nos tornam humanos.