ezzquias 09/07/2024
O enigma de Capitu.
Dom Casmurro, escrito por Machado de Assis e publicado em 1899, é um dos romances mais importantes da literatura brasileira. A obra, envolta em mistério e marcada por um profundo exame psicológico de seus personagens, oferece uma narrativa rica em ambiguidades e sutilezas. Nesta resenha, busco explorar a complexidade do enredo, o brilhantismo dos personagens e a maestria literária de Machado de Assis, que juntos conferem a este romance sua duradoura relevância e fascinante ambiguidade. O romance é narrado por Bento Santiago, também conhecido como Bentinho ou, na fase adulta, Dom Casmurro. O título do livro já prenuncia o tom do narrador: "casmurro" refere-se a alguém teimoso, obstinado e reservado, características que definem Bentinho à medida que a narrativa avança. Desde o início, é evidente que a perspectiva de Bentinho será central, o que automaticamente colore a interpretação dos eventos e dos personagens com suas próprias percepções e possíveis preconceitos. A história começa com Bentinho relembrando sua infância e adolescência no Rio de Janeiro. Ele vive com sua mãe, Dona Glória, uma mulher profundamente religiosa que fez uma promessa de enviá-lo ao seminário caso ele sobrevivesse à infância. A figura de Dona Glória é essencial para compreender a pressão que Bentinho sente ao longo de sua juventude, uma vez que a promessa de se tornar padre contrasta diretamente com seus próprios desejos e aspirações. Capitu, ou Capitolina, é a vizinha e amiga de infância de Bentinho. Desde cedo, a relação entre os dois se desenvolve de forma intensa e apaixonada. Capitu é descrita como uma menina de "olhos de cigana oblíqua e dissimulada", uma descrição que permeia todo o romance e se torna um ponto crucial para a ambiguidade da narrativa. A expressão, carregada de conotações de mistério e sedução, sugere uma profundidade emocional e uma capacidade de manipulação que Bentinho parece temer e admirar ao mesmo tempo. O desenvolvimento do enredo gira em torno das tentativas de Bentinho de escapar do seminário e viver seu amor por Capitu. Com a ajuda de amigos e aliados, incluindo José Dias, um agregado da família, Bentinho consegue finalmente evitar o destino clerical. Ele se casa com Capitu, e é nesse ponto que a narrativa começa a se aprofundar nas questões de ciúme e dúvida que assombrarão Bentinho pelo resto de sua vida. A entrada de Escobar, um amigo de Bentinho, adiciona uma nova dimensão ao enredo. Escobar é um jovem simpático e bem-sucedido, cuja proximidade com Capitu começa a despertar em Bentinho suspeitas de infidelidade. A partir daqui, a narrativa se torna um estudo meticuloso da psique de Bentinho, à medida que ele luta com sua crescente obsessão pela possível traição de Capitu. Machado de Assis magistralmente mantém o leitor em suspense, nunca revelando completamente a verdade sobre os acontecimentos. A morte prematura de Escobar é um ponto de virada na história. A suspeita de Bentinho sobre a relação entre Capitu e Escobar se intensifica, culminando em uma série de confrontos e tensões que gradualmente corroem o casamento deles. A ambiguidade da narrativa é especialmente evidente aqui: enquanto Bentinho interpreta vários eventos como provas da traição de Capitu, essas mesmas situações podem ser vistas de maneiras totalmente inocentes. A genialidade de Machado de Assis reside na construção de uma narrativa que permite múltiplas interpretações, deixando o leitor incerto sobre a verdade. Um aspecto crucial de Dom Casmurro é a sua estrutura narrativa. A história é contada em primeira pessoa, o que significa que tudo o que sabemos é filtrado pela perspectiva de Bentinho. Essa técnica cria uma sensação de intimidade, mas também levanta questões sobre a confiabilidade do narrador. Bentinho admite, em vários momentos, que sua memória pode ser falha e que sua interpretação dos eventos é subjetiva. Essa autoconsciência adiciona uma camada de complexidade ao romance, pois o leitor deve constantemente questionar o que é verdade e o que é resultado da paranoia e do ciúme de Bentinho. A figura de Capitu permanece enigmática ao longo de todo o romance. Enquanto Bentinho a vê como dissimulada e possivelmente infiel, há várias indicações de que suas suspeitas podem ser infundadas. Capitu é uma personagem multifacetada, cuja verdadeira natureza é difícil de discernir. Essa ambiguidade é um dos pontos fortes do romance, pois permite diferentes leituras e interpretações. A incerteza em torno de Capitu é um reflexo da complexidade das relações humanas e da dificuldade de alcançar a verdade absoluta. Além do enredo principal, Dom Casmurro também é notável por suas reflexões filosóficas e sociais. Machado de Assis utiliza a história de Bentinho e Capitu para explorar temas como o ciúme, a memória, a identidade e a hipocrisia social. A crítica à sociedade carioca do século XIX é sutil, mas presente, revelando as contradições e injustiças de uma sociedade marcada por desigualdades e convenções rígidas. A análise de Dom Casmurro não estaria completa sem mencionar a linguagem e o estilo de Machado de Assis. Sua prosa é marcada pela ironia, pelo uso magistral da linguagem e pela habilidade de criar cenas e diálogos vívidos. A escrita de Machado é ao mesmo tempo elegante e acessível, permitindo que os leitores se envolvam profundamente com a história e os personagens. A ironia, em particular, é uma ferramenta poderosa no romance, utilizada para revelar as fraquezas e contradições dos personagens e da sociedade em que vivem. Dom Casmurro é uma obra que resiste ao tempo devido à sua complexidade e profundidade. Cada leitura oferece novas perspectivas e insights, e a ambiguidade central do romance garante que ele continue a ser objeto de debate e análise. Machado de Assis cria um mundo literário que espelha a realidade de forma tão precisa e multifacetada que leitores de diferentes épocas e contextos podem se ver refletidos nele. O impacto de Dom Casmurro na literatura brasileira e mundial é inegável. A obra tem sido estudada e discutida em inúmeros contextos acadêmicos, sendo reconhecida como um exemplo exemplar da literatura psicológica e modernista. A capacidade de Machado de Assis de penetrar nas profundezas da psique humana e de capturar as nuances das emoções e relações humanas é comparável aos grandes mestres da literatura mundial. Em conclusão, Dom Casmurro é uma obra-prima que merece seu lugar no cânone literário. O romance oferece uma leitura envolvente e desafiadora, com personagens complexos e uma narrativa rica em ambiguidades e sutilezas. A habilidade de Machado de Assis de explorar temas universais através de uma história aparentemente simples é um testemunho de sua genialidade como escritor. Dom Casmurro não é apenas uma história de amor e ciúme, mas um exame profundo da natureza humana e das intricadas dinâmicas das relações interpessoais. É uma obra que continua a fascinar e intrigar leitores, convidando-os a mergulhar em seu mundo e a questionar suas próprias percepções de verdade e realidade.