Bruno Oliveira 22/05/2015Duas reflexões sobre Olhai os lírios do campoEm vez de resenhar Olhai os lírios do campo decidi escrever alguns pensamentos suscitados pelo livro. Separei-os em dois pequenos textos.
Sobre o conteúdo desses pensamentos, devo advertir que não estou pretendendo fazer uma descrição fidedigna da obra, mas a situando em minha subjetividade e fazendo com que dialogue com ela.
I
“Voltou a cabeça para o lado, atraído por um latido. Viu um homem alto, ruivo, com casaco cor de charuto e calças de flanela creme. Trazia um cão preso por uma corrente prateada. Atravessou o portão, apressado. Deu dois passos. Voltou-se:
– Heh, rapaz – gritou.
Eugênio ergue-se e caminhou para ele. O desconhecido estendeu a mão com a corrente.
– Segura este cachorro.
Falou em tom autoritário e seco. Eugênio obedeceu sem refletir. O homem fez meia volta e dirigiu-se em passadas largas para a capela.
O cão pulava e latia desesperadamente. Eugênio olhava para o animal com ar estúpido. O coração batia-lhe mais forte. O rosto estava em fogo. Tudo aquilo se passara com tanta rapidez que ele não tivera a menor hesitação. Obedecera. Era uma vergonha. Um desaforo. Olhou com ódio para o homem de casaco marrom e calças de flanela creme, que entrava agora na igreja. Segura este cachorro! Como se ele fosse um criado, uma coisa sem dono. O seu sentimento de humilhação era tão grande, tão fundo, que ele sentia desejos de se esconder. Procurou com os olhos um refúgio. Achou-o entre uma das grandes colunas do pórtico e o corpo do edifício. Dirigiu-se para lá e sentou no degrau de granito. Os seus pensamentos eram um tumulto. Ele e o cachorro – as duas figuras centrais do Mundo naquele momento. O cachorro era mais bonito, mais bem cuidado e mais feliz do que ele. Eugênio Fontes, menos do que um cachorro. Gente pobre. Vida de cachorro. Meu pai e eu: olhos de cachorro.”
Ser olhado
Ser olhado constitui uma experiência tão ordinária que é facilmente banalizada. O outro nos enxerga. Ainda que seja para nos ignorar ou para nos integrar logo mais à paisagem, ele nos enxerga, e nesse breve intervalo entre uma piscada e outra algo curioso acontece: o outro retém para si algo nosso. Seu olhar como que agarra alguma coisa nossa que dali por diante deixa de nos pertencer.
Com o que ele ficou? Eis a questão mais natural que podemos fazer. Importa-nos deveras reaver esse pedaço perdido, encontrado por um estranho como uma novidade, pois quem sabe se na pista desse pequeno mapa não nos descobriremos sob uma nova perspectiva mais interessante e bela?
Somos vistos – eis algo de suma importância.
Embora seja apenas uma daquelas que são possíveis a nosso respeito, o olhar alheio fixa uma imagem que é feita em função de um indivíduo real, consequentemente, ainda que nos perguntar se ela é verdadeira ou não, não há dúvidas de que ela é ao menos verossímil. Com tal imagem ganhamos um novo ponto de vista sobre nós mesmos, um espelho em que podemos comparar o real e o reflexo que emerge dele, fazendo com que, mais que querer saber quem somos no olhar do outro, queiramos saber o que o olhar do outro mostra daquilo que somos.
Quem sabe até mudemos um pouco nossa postura para parecer mais com a imagem?
2. Diversos olhares tocam o protagonista de Olhai os lírios do campo: sua família o vê e cuida dele, Olívia o enxerga e o ama, e assim por diante. Durante muito tempo, a imagem na retina daqueles que gostavam dele pouco lhe interessou e pouco influiu sobre ele, ao passo que outras imagens formadas em outras retinas jamais puderam ser ignoradas pelo personagem. O olhar dos bem-nascidos com os quais se encontrou, por exemplo, incidiu de forma poderosa sobre ele – terá visto em seus olhos algo difícil de esquecer?
Olhai os lírios do campo apresenta muito bem a experiência de se perceber pela perspectiva do outro e, principalmente, a experiência de se perceber pelo olhar de desprezo que ele frequentemente nos direciona. A descrição acurada do desdém vindo do outro e dos pequenos gestos dos submissão que assumimos porque seus olhos pesam sobre nós e nos fazem curvar constitui um dos aspectos mais notáveis da obra.
Na história, Eugênio é pobre e nunca lhe é permitido esquecer disso: as calças de criança eram rasgadas, o terno de formatura era alugado e seu sonho (que sonho?) era deixar de ser o que tinha sido a vida toda: um joão-ninguém. Mais que ser pobre, Eugênio era alguém que se entendia como pobre, e conquanto tivesse amor na vida e muita ajuda para viver coisas impossíveis à sua condição social, podendo assim produzir imagens mais otimistas de si mesmo, aquilo que moldou mesmo seu auto-reflexo foi essa pobreza intransponível ressaltada em seus encontros com os bem-nascidos que, ao verem Eugênio como verme, fizeram com que ele também se visse como tal e rastejasse.
Por que, todavia, não rastejar? Por que não se resignar com o que se é tal como tantos outros? Que dignidade é essa que o fez achar que não lhe cabia a mesma vida de porcaria que todo o mundo? Por que não parou e se deixou morrer? Por que não ficou estático e viveu a mesma vida de bicho de seus pais e avós?
Sem que jamais reclamem os bois geram carne e pele para outros comerem e usarem. Nem rezar por piedade eles rezam. De igual modo, as plantas se dobram ao peso da chuva e à voracidade das formigas. Morrem sem motivo porque também nasceram sem motivo. Eis o curso ordinário das coisas contra o qual ninguém se revoltaria. Mas alguns se revoltam. Eugênio se revoltou. E por quê? Acaso ele pensava que os outros não sabiam o que eram e o que viveriam? Que os pais não conheciam desde cedo a vida de sombras que levariam? Será que as ovelhas não sabem que são carne para o lobo e lã para o homem?
Eugênio não era um tolo. Ele sempre soube o que acontecia ao seu redor e o que lhe aconteceria se permanecesse na pobreza, entendendo bem que quando alguém assente com seu lugar no mundo não é porque ignora os sofrimentos contidos nele, porém justamente porque sabe que o caminho contrário – da revolta contra o seu lugar natural – está tão permeado de sofrimento quanto a aceitação estática da vida, quiçá até mais, pois ele é do começo ao fim descaminho.
A bem dizer, nossos ancestrais vem nascendo e morrendo há séculos: eles fundaram cidades para morrerem em suas catacumbas e semearam os campos somente para caírem famintos ao chão, ensinando-nos muito bem como nascer e morrer, contudo, como poderemos nascer e viver? Será que alguém já foi assim tão longe?
4. O olhar de desprezo do outro lhe é insuportável justamente porque é isso que ele ressalta: a existência desgraçada que a pobreza impõe. Refletida em seus olhos está a imagem de um Eugênio zé-povinho destinado a morrer sem nada, sendo esse olhar o espelho mais feio que ele viu em toda sua vida porque o que ele reflete é toda a sua vida.
Por isso, apesar da força dessa imagem e da crença profunda que tinha nela, Eugênio não quis aceitá-la. Recusou-se a ser plebeu, camponês, chão-de-fábrica, gentalha, todos esses, aliás, tampouco lhe interessou procurar um novo ângulo e investigar melhor se não era o reflexo que estava turvo, ou se a camisa sem querer teria sido vestida do avesso. Escolheu a revolta. Foi diretamente ao extremo e quis logo quebrar o espelho. Fez de sua vida um martelo.
– Mas, Eugênio, meu caro, que reflexo tem quem estilhaça o espelho acreditando na imagem?
II
“Contemplava Olívia. O luar lhe batia em cheio no rosto. Ela era bela, duma beleza que nada tinha de agressivo, mas que jazia escondida como um tesouro; era serena e tinha algo que fazia pensar nas coisas eternas e imutáveis”
Então Olívia era bela…
1. A beleza contém qualquer coisa arbitrária, qualquer coisa que se impõe. Quem dá notícia de uma pessoa bonita jamais encontra um interlocutor que lhe pergunte: “ora, mas é bonita por quê?”. O que é muito belo é também muito óbvio, pois tem na superfície tanto encanto que aquele que o contempla crê que nada tem que adivinhar, já que nada abaixo dela poderia torná-la melhor. No máximo, deseja-se desnudá-la para que se possa vê-la por inteiro.
Com isso, pouco importa que o que é belo também fale, dance ou conte histórias, basta que seja belo e continue assim, pois diante dessa beleza nada quereremos perguntar. Ela está colocada – simplesmente – e isso é suficiente para satisfazer nossos sentidos.
2. Olívia, no entanto, não tinha essa beleza despótica que escraviza o corpo e a alma de quem vê. O que tinha de bonito estava imerso bem abaixo do óbvio, e jamais poderia ser visto por aqueles acostumados à banalidade de uma olhadela e que julgam num segundo o que é belo e o que é feio.
Nas poucas vezes em que é exposta, é dito que tal beleza “faz pensar” em vez de somente nulificar o pensamento com a luxúria vulgar e os lugares comuns de uma mente embotada. Tal beleza eleva e o motivo é simples: ela permite que perguntemos por ela, que nos imiscuamos em seus significados e perguntemos afinal por que Olívia era bela. É como se pudéssemos questionar o narrador:
– O que vês tanto nessa moça, senhor narrador? Por que a segue por toda parte? Por que não me conta das outras?
E, a partir disso, a narrativa formulasse uma longa resposta em forma de labirinto, sugerindo significados possíveis conforme apresentasse os atos da moça.
Assim, ao longo das páginas, paciente perante nossas inquietações, o narrador nos fala dessa beleza com delicadeza:
– Olhe como Olívia faz, caro leitor, escute como ela sonha, como sofre quando não estão olhando…
São respostas sugeridas pela construção sutil do personagem que fazem com que fiquemos cada vez menos afoitos e cada vez mais cativos de seu discurso, passando a escutar acerca de uma beleza livre de superficialidades que nunca se esgota. Jamais nos é dito definitivamente por que Olívia é bela e nem desejamos nada em definitivo. Queremos o labirinto da resposta sem se importar em sair dele. O rei ouvindo Scherazade sem nunca saber dizer por quê ouve e sem nunca querer que acabe. Apenas conte mais, conte a beleza infinitamente.
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