Fran Kotipelto 26/03/2011
Um lugar deve existir,uma espécie de bazar,onde os sonhos extraviados,vão parar...
Acredito que todo mundo já tenha passado pela experiência de querer dizer algo sobre algum livro,mas faltaram palavras para descrever tal maestria. É verdade, acontece com qualquer pessoa, (neste caso só com as pessoas que lêem,obviamente).
Assim que comecei a ler "O Homem Duplicado" eu sabia que deveria fazer no mínimo um comentário sobre a obra,mas eu só funciono no quesito "resenha" quando tenho algum ponto de inspiração que não seja apenas o livro que pretendo resenhar. Sendo assim, apesar de tê-lo terminado, a ideia de resenha ficou vaga, ou melhor dizendo,engavetada na mente apenas como um desejo.
Quando a minha esperança já estava saindo da caixa e perdendo o efeito,e eu caminhava desolada e desanimada para a Universidade,ouvi a voz de uma magrela garotinha de uns 8 anos de idade de mãos dadas com seu pai catarolando uns versos de uma bela canção chamada "A Moça do Sonho", do Chico Buarque e Edu Lobo:
"Súbito me encantou
A moça em contraluz
Arrisquei perguntar:
- Quem és?
Mas fraquejou a voz
Sem jeito eu lhe pegava as mãos
Como quem desatasse um nó
Soprei seu rosto sem pensar
E o rosto se desfez em pó(...)"
E eis que o verso e complemento me surge,e minha resenha começou a ser "processada".A partir daquela pergunta expressa na letra da canção, eu percebi que poderia escrever uma resenha digna de "O Homem Duplicado",ou pelo menos tentar.
A trama inicia-se com a vida de Tertuliano Máximo Afonso,um sujeito comum,professor de história,dócio e submisso,que vive sozinho em seu apartamento e sem grandes expectativas. Entediado,um dia recebe do colega professor de matemática, a sugestão de assistir ao filme "Quem Porfia Mata a Caça". Ao ver o filme,Tertuliano repara num personagem secundário que mais tarde descobre ser Daniel Santa-Clara,nome artístico do ator António Claro,uma cópia idêntica sua,e a história então tem seu desenrolar,pois Tertuliano de repente encontra-se num mar de dúvidas,não sabe o que é,quem é.E assim cheio de dúvidas,ele procura António,ou por ele mesmo,ou por ambos...
Através dessa magnífica história,Saramago visa suscitar questões bastante importantes,e que por mais óbvias que sejam, não costumamos pensar.No romance, Tertuliano não vive até a descoberta do duplicado,não atenta para as questões da existência,está perdido entre o nada e o vazio da rotina(você percebeu agora que todo mundo "vive" um pouco dessa maneira?).E quando se vê na imagem do outro, a obsessão não se enraiza por si mesmo,mas por saber-se original.
Fascina na narrativa de Saramago essa busca por uma sensibilidade esquecida em meio à humanidade repleta de respostas prontas, mostrando que o tempo da procura que marca a trajetória do personagem (e de nós mesmos),é cíclico,como a mostrar que a procura do homem por si mesmo não tem fim.
Por que ao tratar do homem duplicado,Tertuliano não vai buscar resposta na ciência? Por que ele quer encontrar o homem,razão de sua inquietação e não a explicação para o fato inusitado? Mas é arriscando a si próprio que se demonstra que o homem se faz na medida em que adquire consciência de trazer em si o seu ser. E este algo,por si mesmo toca e atinge o homem.Pois segundo Saramago,"Quanto mais te disfarçares,mas te parecerás a ti próprio".
E este estranhíssimo,singular,assombroso e nunca antes visto caso do homem duplicado, o inimaginável convertido em realidade,o absurdo conciliado com a razão é o homem no limiar da inquietação sobre sua origem,por isso a busca por respostas.Semelhante a um espelho que se repete,dá-se o encontro de Tertuliano e António numa atmosfera de dúvida entre a imagem virtual daquele que se olha ao espelho,A imagem real daquele que do espelho o olha,uma vez que o homem é incompletude.
E é esse voltar-se para si que engloba o outro,e Tertuliano reconhece que o novelo do espírito humano tem muitas e variadas pontas.Ele próprio e seu cuidado com a vida, agora é o essencial, visto que ele percebe que a única coisa que dura toda a vida é a vida.