Jota J 19/04/2017O evangelho segundo Saramago“e o amor vos libertará”
(ps: a referência das páginas diz respeito à edição de bolso da Cia das Letras)
De antemão eu aviso: esse é um texto parcial. Não gosto de imparcialidades, sempre tomei partido. Hoje tomo dois: o de Saramago, enquanto evangelista, e o de defensor da tese de que O Evangelho Segundo Jesus Cristo é, antes de mais nada, um livro sobre o amor.
Se tem amor, tem morte. Se tem morte, tem redenção. Explico-me: vejo n’O Evangelho três histórias de amor distintas, mas que se complementam para narrar os acontecimentos na vida de Jesus Cristo de um ponto de vista, digamos, humano. Humano, ateu e português/ibérico.
O Evangelho é humano, pois, ao meu ver, antes de ser apenas a perspectiva de Jesus Cristo sobre os fatos de sua vida, é também a perspectiva de Saramago sobre a vida de Jesus. Isso é um ponto importante quando consideramos a origem do autor, Portugal, país de um catolicismo profundo, quando consideramos a condição de não religioso do autor e quando consideramos a mistura entre dois gêneros textuais, o mito e o romance.
No texto de Saramago o autor mistura os fatos já conhecidos sobre o mito cristão - em suas quatro versões e variáveis - (alô, Lévi-Strauss!) com uma narrativa que lhe é própria e constantemente marcada por seus posicionamentos políticos e (não)religiosos.
Mas longe de ser um manifesto anticristão/ateu, O Evangelho de Saramago é ratificador do mito de Cristo enquanto Messias. (É como nos diz Lévi-Strauss, não adianta queimar Papai-Noel alegando ser um símbolo pagão, isso só reforça seu significado) Digo que ele ratifica o mito cristão, pois (blasfêmia à vista) ao recontar o evangelho a partir da perspectiva de Cristo (ou seria na de Saramago?) o autor dá novos ares à história já conhecida.
Saramago não nega os feitos de Jesus, mas antes, os ressignifica à luz de um pretenso argumento humanista - ou saramaguiano, entendam como quiserem.
Voltando agora às três histórias de amor, Para mim, os três argumentos utilizados pelo autor para costurar a narrativa de seu evangelho são: a história de amor entre Jesus e Maria de Magdala - e redenção desta que deixa de ser prostituta por/através do amor (p. 236). É também a história de amor, e de tudo a ele acompanha, da relação entre pai e filho (p. 57) e de uma mãe e seu filho (p. 289). Há aqui também redenção, mas de modo distinto.
José, que durante todo o romance havia sido para Jesus uma figura emblemática e dual, às vezes objeto de amor e, outras vezes, objeto de repulsa, tem sua imagem redimida perante o filho quando dos momentos finais do livro e da discussão entre Deus, o Diabo-Pastor e Jesus Cristo.
Maria por sua vez, ao contrário de Maria de Magdala, de José, dos futuros cristãos e até do próprio Deus (retomarei esse ponto mais tarde), é a única que não foi redimida por Jesus, seu filho. Sua redenção é conquistada com sua própria atuação enquanto mãe do Cristo e isso é ensaiado durante toda a narrativa, desde o momento da concepção, que também ali começa a sua “degradação” diante do filho, até seu ápice, o final do trecho da passagem que retrata a transfiguração da água em vinho (p. 289).
Por fim, a terceira história de amor do livro aparece de modo bem sutil, ao meu ver, quando lemos o evangelho de Saramago enquanto uma crítica à uma religião que se pretende humanista. Nesse sentido, os novos significados que Saramago dá a fatos tão conhecidos do evangelho parece ser, ao mesmo tempo que uma crítica às atuais posturas do cristianismo e do catolicismo principalmente, um ensaio, ainda que sem pretensão de ser aceito como verdadeiro, sobre a moralidade de uma religião que se quer cristã.
Para finalizar, ainda que Jesus tenha tramado todo um plano para que a vontade de seu pai divino não se concretizasse tal como Ele queria, não surtiu o efeito desejado. Ao ler o desfecho da história, fiquei com uma sensação, quiçá foucaultiana, de que não se foge das amarras do poder. Parece que, ademais do livre arbítrio que homens e mulheres gozam, parece existir também um plano já traçado pelas mãos divinas e do qual não se pode fugir - tal como quis o Jesus de Saramago. É nesse sentido que vejo a morte de Cristo, tal como narrada pelo autor, como uma redenção, ainda que involuntária, que o próprio Filho faz de seu pai-Deus.
Por esse motivos, penso que O evangelho segundo Jesus Cristo possa ser lido na chave de um livro sobre o amor e todas as consequências que ele traz consigo. Numa adaptação livre do evangelho de João: conhecereis o amor e o amor vos libertará.