Kassem.Abdalla 18/07/2023
Um desgraçado fruto da desgraça
Em razão de uma pressa ilusória, comecemos: Este não é um livro para quem quer simplesmente sentar para passar o tempo, logo adianto. É uma obra profunda, que exige em sua essência, uma dedicação por parte do leitor. E essa dedicação, creio, se estende tanto, que se aplica até se tratando dos nomes (e dos apelidos nada carinhosos). Mas deixemos tais avisos de lado.
Dostoievski é o típico pessoa que dispensaria um dialogo com empresários, ricos ou esses bebes do capitalismo para poder ter a honra de conhecer o desgraçado (o estraçalhado pelo sistema). Não uso tal termo de forma depreciativa, mas no sentido de sofrimento, uma vez que a obra além de girar em torno da parte mais pobre de São Petersburgo, ela vai ainda mais a fundo, e penetra no fundo do poço; aqui há loucura, prostituição, pecado, assassinato, todos próximos. E tudo isso faz criar uma aura, um tom meio lúgubre que eu nunca havia visto em nenhuma obra.
O protagonista, Raskolnikov (Rodin), é um ex-estudante, morador de uma casa minúscula que decide matar uma idosa com base em sua própria teoria que divide a raça humana em dois tipos; ordinária e extraordinária. E tendo como fonte de inspiração, principalmente o Napoleão, Rodin se vê no direito de assassinar uma idosa que, pelo que tudo indica, era quase uma escravocrata, que vivia por enganar os outros. E Rodin se vê quase como um herói limpando o mundo.
Confesso que no decorrer da leitura, associei muito a sua teoria como uma peculiar religião. Ele não é nada mais que a vítima da própria tese, e sendo assim, o resultado de sua conduta foi apenas o seguimento natural da causalidade. Ele se tornou um fanático, e juntando-se a isso, há a claustrofobia de sua casa, a sujeira, a aura lúgubre, sua febre, sua fome, sua preocupação, todo o mundo parecia estar contra ele, a única coisa que o segurava e o fazia confiar em si, era sua própria teoria. E, sendo assim, ele apenas seguiu sua vida, e aquele rumo que tomou, era o que com certeza tinha que acontecer.
Todos os personagens aqui, são magníficos. São, principalmente por causa da realidade dos diálogos de Dostoievski, reais...até demais. E a forma como tudo é construído, cada detalhe tinha que estar no momento em que está. E por mais que a maioria esteja rodeado de pobreza, é lindo ver o caráter caridoso dos personagens, de tal forma que sentimentos certa inveja por eles. É quase como se pensássemos, "ainda em meio a isso, há uma amizade sincera, preciso disso...".
E a forma como o Doski (meu parceiro...rs) descreve a desgraça do pensamento do Rodin, é tão absurda que causa inveja em qualquer aspirante a escritor. Que dor ver a capacidade desse homem de se aprofundar no mais profundo oceano da reflexão...tudo tão vívido que eu não ficaria surpreso se me entregassem tal obra como uma mistura de ficção e biografia. É esplendidamente real, cada movimento. E a loucura e sua transparência no Rodin é tão verossímil que julgamos todas as suas atitudes como "não podia ser diferente".
Em suma, é um drama psicológico intenso e - principalmente - denso. Muito denso. Tudo aqui é pesado, praticamente todas as linhas são pesadas. Poucas são as coisas que dão certo, e no geral, acabamos por torcer para dar errado mesmo. Odiamos e amamos o Rodin, e confesso que desejei que ele fosse preso durante todo o tempo, ainda que eu estivesse sob a hipnose do protagonismo.
Sobre o seu crime...ele é um lunático religioso, em que sua tese é sua religião.
(Coisa curiosa: é fascinante como Doski gosta de ressaltar a felicidade que podemos encontrar no fundo do poço, é quase como se as gotículas de aguas, que no buraco encontramos, fossem a coisa mais valiosa do mundo. Vi isso tanto aqui quanto em "memorias no subsolo", em que tal característica se encontra muito mais presente).
Não recomendo para quem não está com o hábito de leitura em dia, pois é bem provável que tu, leitor inocente, venha a desistir dessa obra-prima.