jota 05/07/2011Sobrevivendo à leituraBem, na verdade esta não é verdadeiramente uma resenha e sim um apanhado geral do histórico de leitura. Mas vamos lá: Sobrevivente é o primeiro livro de Palahniuk que leio. Ele é o autor de Clube da Luta (que virou filme bastante conhecido) e também de No Sufoco, dentre outros livros favoritos aqui no SKOOB. Sobrevivente começa no capítulo 47 (os capítulos são numerados em ordem decrescente), pois a história é contada de trás para a frente, e isso é muito interessante, não? O personagem Tender Branson sequestra um avião para se matar e começa a contar sua história para o gravador da caixa-preta do aparelho. Isso depois de o piloto ter saltado de paraquedas e os demais passageiros terem sido deixados em terra. Ele diz que é um suicida, não um assassino.
Tender Branson é mesmo um personagem muito curioso. Em seu passado de empregado doméstico (muito comum nos EUA e nem um pouco discriminado), ele ensina coisas do tipo: "Para tirar batom de um colarinho, esfregue um pouco de vinagre branco. Para manchas teimosas com base de proteína, tipo sêmen, tente enxaguar com água fria e sal, e depois lave normalmente. (...) Me pergunte a forma mais rápida de tapar buracos de bala na parede da sala. A resposta é pasta de dente. (...) Para tirar sangue de teclas de piano, esfregue com talco ou leite em pó." E por aí vai...
Mas a saga de Branson rumo ao passado prossegue (já escrevi que os capítulos são em ordem decrescente, não?), porém, com alguns flashbacks, num dos quais ele ensina a roubar grandes lojas discreta e eficientemente (não vou passar nenhum dos macetes; quem quiser saber como se faz que leia o livro, ah, ah, ah!). Coisa que aprendeu com a assistente social maluca que estava justamente encarregada de recuperá-lo para a sociedade. Vá entender. Muito, muito engraçados esses trechos do livro.
É bom que se diga que "sobrevivente" aqui se refere à pessoa que sobreviveu a uma tentativa de suicídio e agora tem uma assistente social para cuidar dela. No caso, a de Tender Branson é muito louca e bêbada. Além dela, há também uma Igreja do Credo, que pratica o culto da morte e onde Branson recebeu educação religiosa. Juntando as duas coisas, num trecho da página 102 temos: "A assistente social olha as pastas dos seus últimos clientes. Brannon, falecido. Walker, falecido. Phillips, falecido. Todo mundo falecido. Todo mundo, exceto eu." É claro que isso e outras situações de completo nonsense que atravessam todo o livro fazem parte de uma feroz crítica às instituições e ao sistema capitalista americano pré crise econômica de 2008 (o livro foi escrito em 1999 e tardiamente publicado no Brasil, é bom lembrar também).
Mas continuando: Quando um ex-BBB (ou algum chato feito Pedro Bial) morre vai direto para o Inferno ou antes passa algum tempo confinado no Purgatório esperando vaga? Esta não é uma pergunta feita pelo personagem Tender Branson, mas bem que poderia ser. Depois de consumir um coquetel de comprimidos diversos, incluindo aí até mesmo alguns placebos, ao final do capítulo 24 (à página 133), ele pergunta: "E se Cristo tivesse morrido de uma overdose de barbitúricos, sozinho no chão do banheiro, Ele teria ido para o Céu?" Como se vê, as estrepolias literárias de Chuck Palahniuk parecem mesmo não ter fim...
Tender Branson continua contando sua vida pregressa para o gravador da caixa-preta do avião que ele sequestrou. Durante vários capítulos ele fala de sua passagem pela Igreja do Credo. Lá ele aprendeu que pastor tem que ter uma bela estampa; ser bonito importa mais do que dizer coisa com coisa. E um auxiliar lhe ensina que, para aparecer bem na televisão e no púlpito, ele pode "(...) suavizar o inchaço sob meus olhos esfregando um pouco de creme para hemorroidas." Essa mesma igreja edita um livrinho de bolso, com cerca de 50 orações para se rezar sempre que for necessário. Orações encontradas: para fazer alguém te amar, para cegar seu inimigo, para manter uma ereção, para criar espaço extra de armazenamento, para assinar documentos importantes que você não lê... No capítulo 17 ele está sentado no banheiro do aeroporto e começa a ler o que as pessoas escrevem nas paredes e portas do sanitário. Eis uma das pérolas escatológicas recolhidas (algumas são, digamos, impublicáveis aqui): "Bem, aqui me sentei, tentei cagar mas só peidei." Mas Sobrevivente não é bem-humorado assim o tempo todo, claro.
Caixa-preta de avião é laranja, na verdade. E Chuck Palahniuk não é um sátiro (um dos significados da palavra é "homem depravado, libertino"), mas é um autor satírico (e crítico das instituições americanas). Sobrevivente espelha bem isso. E eu cheguei ao final, sobrevivi à vertigem provocada por este voo de 239 páginas. É, é quase como numa viagem: tem horas em que se fica cansado com tanta coisa acontecendo, outras que são extremamente prazerosas. Acho que é por aí. Mas algumas pessoas podem ter enjoo ao ler este livro. Eu avisei. Nota final 4, pois não existe 4,1.