Coruja 15/03/2011“Talvez a graça permita que algo de bom nos venha daquilo que foi criado pelo mal.”De todos os trabalhos que fiz na faculdade de direito, aquele com que mais me diverti foi um trabalho de teoria dos contratos, e que tínhamos de analisar a questão dos contratos de adesão e cláusulas abusivas à luz do Fausto de Goethe.
Bem, a coisa começou mais ou menos assim: a professora passou uma lista de livros para a turma se dividir em grupos e trabalhar um daqueles. Inicialmente, iria haver sorteio dos livros, mas ninguém - absolutamente ninguém - queria pegar Goethe (que era o único livro de literatura da lista)...
Minto. Havia duas pessoas na sala que adorariam pegar Goethe, mesmo porque, ambas já tinham lido o livro. E as duas pessoas estavam no mesmo grupo. Entre eu e Davi, Guilherme e Carol não tiveram muita escolha.
E todos ficaram felizes da vida que Fausto não estaria no sorteio.
Fizemos a divisão do trabalho de forma que, a cada tema que começássemos, também se aresentasse um trecho da obra. De alguma forma que não sei explicar muito bem, misturamos Goethe com Confúncio, Shakespeare e Al Pacino em O Advogado do Diabo. Fizemos o contrato assinado e selado com "sangue" (e, ao final da apresentação, demos o pergaminho de presente para a professora).
Modéstia à parte, foi o melhor trabalho dos apresentados no ciclo de seminários. Até porque, em nenhuma outra das apresentações, estavam presentes Deus e o Diabo.
Quando dividimos a questão da pesquisa, eu fiquei com a introdução, para falar justamente da parte literária do trabalho. E, qual não foi minha surpresa ao descobrir que Fausto não era exatamente um personagem exclusivo de Goethe...
Por volta de 1540, morreu na Alemanha um mágico errante largamente conhecido à época chamado Jorge Faust, ou, simplesmente, Doutor Faust.
Fausto foi contemporâneo de outros magos conhecidos – tal como Paracelso e Agrippa, numa época em que o estudo da magia interessava aos acadêmicos, que se viam habitantes de um mundo governado por forças invisíveis. Sorte dele, pois, tivesse vivido um pouco mais, teria certamente sido alvo da perseguição empreendida pelos partidários de Lutero e pela própria Inquisição.
Foi Lutero, aliás, juntamente com seus seguidores, que acabou por demonizar a figura do mago, ligando-o a Satã e culpando o mestre infernal por sua morte. A idéia do contrato com data marcada, entretanto, só se tornaria conhecida em 1587, com a publicação do Faustbuch, em Frankfurt.
Essa primeira obra apresenta Mefistófeles (do grego Mefotófiles ou Me to fós files – “a luz não é amiga”, em clara contraposição a “Lúcifer”), um espírito demoníaco, que se compromete a servir a Fausto, obedecendo-o e conseguindo para ele tudo que este desejasse, respondendo todas as suas perguntas sem nunca faltar-lhe à verdade. Em troca, Fausto assinaria um documento dizendo que, após 24 anos de serviço, se todos os seus desejos tivessem sido satisfeitos, o diabo “poderá fazer de mim o que quiser, à sua maneira e conforme à sua vontade, apossar-se do meu corpo, alma, carne, sangue e bens”.
O Faustbuch constitui-se, entretanto, mais em uma comédia farsesca, explorando as situações pelas quais passa Fausto, envolvido pelas artes de Mefistófeles.
Foi depois de ter caído nas mãos do teatrólogo Cristopher Marlowe (contemporâneo de Shakespeare), que a obra ganhou, em 1592, a dimensão trágica que conhecemos hoje. Marlowe conseguiu desenvolver em sua peça os três pilares do mito: a excitação pelo conhecimento, o entusiasmo pela beleza terrena e a danação espiritual. Dois séculos depois, Goethe daria a história um significado ainda mais amplo.
À primeira cena de Marlowe, vamos encontrar Fausto debatendo-se sozinho em seu gabinete de estudo, avaliando todos os ramos do conhecimento com desalento. Começando pela lógica, ele logo se decide que tal ciência tem como finalidade apenas permitir “que se discorra bem” e ele não tem necessidade mais de estudá-la, pois já aprendeu a usá-la e, de qualquer maneira, ele crê que seu “gênio... requer algo maior”.
Avalia então a medicina e, como médico, vê que já alcançou a fama. Apesar disso, “és apenas um homem, Fausto”. De que lhe adianta a medicina, se não pode ressuscitar mortos ou ter a vida eterna? É então que ele se volta para a magia e, a partir daí, liga-se a Mefistófeles.
O Fausto de Goethe é diferente nesse aspecto. Vamos encontrá-lo primeiro passeando por entre as pessoas do povoado onde mora – estamos no meio de um festival e ele se compraz em ver as pessoas se divertindo; mas ele mesmo não se diverte. É um personagem respeitado e admirado por todos, mas permanece isolado em seu próprio mundo – é individualista ao extremo.
Quando Mefistófeles aparece para lhe propor o acordo (acordo esse que começou com uma aposta entre Deus e o Diabo, numa cena que muito lembra o livro de Jó, no Antigo Testamento), não é propriamente ao conhecimento que ele tenta em Fausto, mas à necessidade que este sente em se ver como um homem comum entre os outros:
> Não te é marcado nenhum limite, nenhuma finalidade. Se te agradar experimentar um pouco de tudo, apanhar em vôo o que vier, faz como entenderes. Vamos, liga-te a mim, não tenhas medo!
> Sabes bem que não se trata de divertimentos. Eu consagro-me ao tumulto, aos prazeres mais dolorosos, ao amor que sabe a ódio, à paz que sabe a desespero. O meu coração, curado do ardor da ciência, não ficará daqui em diante, fechado a qualquer dor. E o que é quinhão de toda a humanidade quero-o concentrar no mais fundo do meu ser; quero, pelo meu espírito, alcançar o que ela tem de mais elevado e mais secreto; quero acumular no meu coração todo o bem e todo o mal que ela contém, e inclinando-me como ela, quebrar-me da mesma forma.
O Fausto de Goethe vive em estado de mórbida insatisfação, no tédio de nunca encontrar o que quer que mitigue sua existência, na desesperança de sua vida como acadêmico. Nada jamais correspondeu às suas expectativas, suas esperanças em compreender o mundo se desvaneceram e tampouco chegou ele a conhecer alguma das alegrias normais da existência.
Destarte, diante da oferta de Mefistófeles, Fausto nada vê a perder. A aposta, então, está lançada.
> Não haja dó, não haja mora! E, se um dia eu disser ao momento que passa: “pára, és tão formoso!”, então me faz morrer ao teu contento, pois decerto morrerei bem venturoso. Que toques então o sino derradeiro; que tua obrigação comigo tenha fim; que a hora pare, que caia o ponteiro e que o Tempo termine para mim!
Ou seja... No dia em que alcançasse afinal algum gozo, sua alma estava entregue ao demônio. Goethe transformou o contrato com data certa de expiração, que aparecia em Faustbuch e A trágica história da Vida e da Morte do Doutor Fausto num prazo aparentemente infinito. Tanto é que, se nessas primeiras obras, Fausto não sobrevivia aos 24 anos acertados (e que, à época, era a idade canônica da maioridade, e não os nossos atuais 21 anos), enquanto o de Goethe chega até quase os cem.
Fausto assim, dispõe de sua vida mortal e de sua alma – que pagaria pela eternidade pelo contrato feito. E, com sangue, assina o contrato.
Outra obra que trabalha com essa temática é O Mercador de Veneza, de Shakespeare (um dos meus textos favoritos do bardo). Nessa peça, Antonio, mercador, amigo de Bassanio, um jovem nobre que muito já despendeu suas heranças, faz um contrato com Shylock, judeu e usurário. Para que Bassanio possa cortejar uma rica e formosa senhora, Antonio empresta dinheiro com Shylock, afirmando que, não pagando a dívida até a data aprazada, dará “uma libra de carne” ao seu credor.
Bassanio ainda reflete por algum instante se aquilo seria certo, mas Antonio garante que, muito antes do prazo se vencer, os navios mercantes que a ele pertenciam teriam voltado, e ele teria sua fortuna de volta. O que seriam, então, três mil ducados?
Por ironias do destino, enquanto Bassanio consegue conquistar a bela Pórcia, Antonio descobre que seus navios soçobraram em alto mar. Resta a ele então pedir clemência a Shylock, o mesmo que era chamado de cão e vilipendiado pelos amigos e pelo próprio Antonio por sua condição de judeu e usurário.
Shylock é irascível em sua vingança – sim, porque o contrato que firmara com Antonio nada mais era que uma forma velada de vingar-se. E, embora todos os amigos de Antonio, incluindo aí o próprio duque da cidade, tentem demover Shylock de cumprir o contrato, nenhum deles, por nem um único momento, pensa ser possível ir contra um compromisso tão formal quanto um contrato. E, com pesar, teriam entregado Antonio nas mãos de Shylock, não fosse a intervenção de Pórcia.
Aliás, toda essa idéia foi revisitada or Ariano Suassuna em O Auto da Compadecida.
Eis portanto a grande questão que nos coloca todas estas histórias (e qual a lógica de trabalhar tal tema numa cadeira de teoria dos contratos): seria justo permitir a execução de um contrato a tal ponto imoral?
A verdade é que não estamos tão longe da libra de carne prometida por Antonio a Shylock como garantia, ou da cessão de toda a sua pessoa e alma que Fausto faz a Mefistófeles. Tal ficção tem perfeita validade em nossa História: enquanto predominaram os princípios clássicos do contrato, um acordo para trabalhar em uma fábrica têxtil na Inglaterra do século XIX era como pactuar com o diabo.
Clara fica a malícia de Mefistófeles em Marlowe, quando da morte de Fausto:
> Oh, demônio feiticeiro, a tua tentação foi o que me privou da felicidade eterna.
> De bom grado eu o confesso, Fausto, e me congratulo. Quando tu estavas no caminho do Céu, fui eu quem te barrou a passagem; quando lias as escrituras, fui eu quem virou as páginas do livro e te desviou o olhar. O quê? Choras? É tarde! Desespera! Adeus! Tolo que ri na Terra há de chorar no Inferno.
O Mefistófeles de Goethe, entretanto, é quase humano. Muitas vezes, ao longo do texto, esquecemos de com quem estamos lidando, não à toa, visto ser ele, de acordo com Fausto, “o espírito que nega”.
Talvez seja por isso que, de todas as grandes obras que trataram do mito do pacto faustiano, apenas na de Goethe o fim termina em redenção para o triste doutor. Isso não acontece no Faustbuch, onde os membros de Fausto são encontrados no dia seguinte à sua noite derradeira; em Marlowe, onde os estudantes discípulos dele, escutam as horas de agonia do mestre, ou ainda, em Thomas Mann, que fez um Fausto músico, representando o pacto numa mulher de bordel, que avisa ao seu hóspede que tem uma doença venérea e, mesmo assim, ele deseja possuí-la e, em virtude do contágio, vem a morrer.
A verdade é que a redenção de Fausto não vem apenas do fato de ser Mefistófeles quase humano, mas de outras situações nas quais as duas partes do pacto se vêem envolvidas, em especial na parte primeira da peça, quando conhecemos Margarida.
Embora tenha começado com um desejo despertado pela luxúria, Fausto realmente se apaixona por Margarida. E é Margarida que há de salvar Fausto na cena final.
“Salvar nos é permitido a quem sozinho lutou”, respondem os anjos, que acompanham a moça, quando Mefistófeles tenta impor seu direito a alma de Fausto mostrando o contrato. E aqui se põe a verdade da posição de final do doutor – a aposta que Mefistófeles fez com Deus é que ele deveria levar Fausto ao seu caminho e, apesar do pacto, o demônio não consegue subverter a alma de seu devedor.
(resenha originalmente publicada em www.owlsroof.blogspot.com)