MF (Blog Terminei de Ler) 20/01/2023
O lado cruel da fé em nossas expectativas
Livro “O deserto dos tártaros” do escritor italiano Dino Buzzati. Já faz algum tempo que o li e, somente agora, escrevo sobre a obra. Ao término da leitura, ainda no calor do momento, escrevi para meus contatos:
“Oh, céus… quando você lê um livro e fica tão comovido e perplexo… que chega a assustar. Um daqueles momentos em que a vida se divide entre antes e após uma leitura… E como é desesperador enxergar o personagem Giovanni Drogo no conhecido ou no familiar querido… e torcendo para nunca encontrá-lo refletido no espelho…”O deserto dos tártaros” do italiano Dino Buzzati deveria ser leitura obrigatória nas escolas… Eis aqui o verdadeiro arrebatamento e filosofia que nenhum pensamento religioso, talvez, será capaz de atingir…”.
A sensação, a empolgação, a comoção, ainda permanecem. Na trama, conhecemos Giovanni Drogo, militar recém lançado à patente de tenente. Ele é, então, designado para o Fort Bastiani, o que ele inicialmente enxerga como a primeira etapa de uma exitosa carreira. Contudo, ao chegar no local, completamente isolado, e com o passar do tempo, sua impressão vai se alterando, na medida em que ele e os soldados que consigo dividem a rotina, sempre idêntica, esperam por um inimigo (os “terríveis” tártaros do título) que nunca chega.
Há alguns pontos a serem considerados sobre a leitura. O primeiro ponto, em minha avaliação, é a crítica ao militarismo em várias frentes. A ausência de um perigo real, que traga uma razão de existência, invoca uma reflexão sobre a real necessidade de uma força armada protetora e, ainda que o ambiente externo se mostre hostil, seria a disposição dessas tropas, no território do país, estrategicamente relevante ou apenas uma demonstração infrutífera de um poderio sem relevância? Essa reflexão, para todos os países que possuem forças armadas, ainda é válida.
A convivência entre os militares, dentro de uma rotina repetitiva e, com rituais formais sem a menor importância, não seriam uma demonstração do vazio na vida militar? Pode-se justificar isso com o argumento do ensino da disciplina. Contudo, de que adianta disciplina se o resultado esperado for pequeno ou sem bons frutos? A disciplina só faz sentido se algum retorno benéfico, social, pessoal ou financeiro, estiver atrelado, ao meu ver. E o motivo disso é o fato de que a vida não para.
Nessa ponto, a obra de Buzatti permite um olhar mais amplo. Afinal, o fluxo da existência é constante e finito. Logo, o foco de nossas ações deve ser claro e justificado. Do contrário, a vida escorre pelo ralo do tempo.
Naturalmente, é necessário se manter atento ao que realmente agrega em nossas vidas e, o autojulgamento de nossa atenção, deve ser uma prática ininterrupta ou, pelo menos, deveria ser. A fé no aguardar de um resultado, o eterno esperar, tem um lado perverso que cobra um preço elevado do indivíduo: a passagem dos anos atrelada à desvalorização da experiência do existir.
A rotina e a disciplina, embora tenham suas inegáveis qualidades, são como um ácido que corrói as estruturas da embarcação que nos conduz pelo Estige, e moeda nenhuma pode comprar ou recuperar aquilo que passou, que se perdeu nas águas. E quando notamos os danos da corrosão, talvez, pode ser perigosamente tardio.
Visto por esse vislumbre, o exército tártaro funciona como uma alegoria, uma metáfora, para algo norteador da existência, que lhe confere sentido mas que, em contrapartida, lhe suga a própria vivência. Ter fé em algo, sonhar com alguma coisa ou alguém, desejar algo… enfim, qualquer coisa que estabelecemos como fator motivador, pode ser também algo que sacrificará o indivíduo. E tal sacrifício não advém da plausibilidade ou possibilidade de ver a moradia de nosso foco erguida. O sacrifício está na construção dos alicerces, das paredes, sem reservar um espaço apropriado para as janelas e para as portas. A janela serve como um estímulo, um convite, para observar os nuances do leque da existência, servindo, igualmente, como um alerta, um chamado de atenção, para o próprio fluxo do tempo. Por sua vez, portas são o caminho para a prática do viver, adicionando-lhe o devido valor. E, convenhamos: seria desesperador viver numa casa sem janelas e portas e, pior, ser incapaz de ter o conhecimento de como construi-las ou, ainda pior, desconhecer o que sejam esses objetos. É a mesma coisa que navegar em um barco que gradualmente afunda.
A obra de Buzatti não serve apenas como uma crítica ao ambiente militar. É muito mais do que isso. Seu livro nos convida a uma necessária reflexão quanto à própria vida, como a vivemos e o que fazemos com nosso tempo. E, quanto mais cedo temos a possibilidade de refletir, mais rápido podemos ajustar a proa em um sentido que nos permita aproveitar a viagem, independente da quantidade de tempestades no caminho e de que o porto final não ser o destino originalmente desejado.
site: https://mftermineideler.wordpress.com/2022/09/18/o-deserto-dos-tartaros-dino-buzzati/