Alexandre Kovacs / Mundo de K 20/05/2016
Svetlana Aleksiévitch - Vozes de Tchernóbil
Editora Companhia das Letras - 384 páginas - Tradução direta do russo de Sônia Branco - Lançamento 19/04/2016.
Quando soube da escolha da escritora e jornalista bielorussa Svetlana Aleksiévitch para o prêmio Nobel de Literatura de 2015, logo imaginei que a Academia estaria priorizando mais uma vez algum tipo de mensagem política em detrimento da própria literatura. Essa opinião devia-se, em parte, ao desconhecimento do trabalho da autora, inédita (e desconhecida) em nosso país até aquele momento e também pelo fato de um trabalho jornalístico documental sobre fatos reais, por mais importantes que tenham sido, não ser comparável a um texto literário de ficção. Bem, eu estava redondamente enganado. O livro representa um texto jornalístico sem dúvida, mas a literatura transborda de cada página, com a força e o sofrimento do povo soviético, assim como em um romance de Dostoiévski.
A extensão da catástrofe de Tchernóbil ainda é pouco conhecida no ocidente. A Central Elétrica Atômica, localizada em uma região próxima à fronteira com a Bielorrúsia, sofreu no dia 26 de abril de 1986 uma série de explosões em um dos seus quatro reatores. Altos níveis de radiação foram registrados no dia seguinte na Polônia, na Alemanha, na Áustria e na Romênia e, alguns dias depois, no restante da Europa. Esses níveis de radiação se espalharam rapidamente por todo o globo, com registros no Japão, china, Índia, Estados Unidos e Canadá. No entanto, os efeitos mais devastadores ocorreram na Bielorrússia com 485 aldeias perdidas, setenta delas sepultadas sob a terra para sempre de forma a conter a propagação radiativa. Hoje, um em cada cinco habitantes do país vive em território contaminado. Em decorrência da exposição da população às doses de radiação, a cada ano cresce o número de doentes de câncer, de deficientes mentais, de pessoas com disfunções neuropsicológicas e com mutações genéticas. O que dizer então dos efeitos nos "liquidadores", homens encarregados de minimizar as consequências do acidente no reator e que foram convocados para apagar o incêndio, construir o sarcófago que isolou o reator danificado e enterrar todos os vestígios de contaminação local (casas, carros, todo tipo de objetos e a própria terra na sua camada superficial). Um dos primeiros depoimentos do livro é da viúva de um dos bombeiros que combateu o incêndio inicial na Central Atômica.
"O meu marido começou a mudar; cada dia eu via nele uma pessoa diferente... As queimaduras saíam para fora... Na boca, na língua, nas maçãs do rosto; de início eram pequenas chagas, depois iam crescendo. As mucosas caíam em camadas, como películas brancas. A cor do rosto, a cor do corpo... Azulada... Avermelhada... Cinza-escuro... E, no entanto, tudo nele era tão meu, tão querido! É impossível contar! Impossível escrever! E mesmo sobreviver... O que salvava era que tudo acontecia de maneira instantânea, de forma que não dava tempo de pensar, não dava tempo de chorar. (...) Eu o amava! Eu ainda não sabia como o amava! Tínhamos nos casado havia tão pouco tempo... Ainda não tínhamos tido tempo de nos saciar um do outro... Andávamos na rua, ele me tomava nos braços e me girava. E me beijava, beijava. As pessoas passavam por nós e sorriam. (...) O processo clínico de uma doença aguda do tipo radiativo dura catorze dias. No 14º dia, o doente morre. (...) Muitos vão morrendo. Morrem de repente. Caminhando. Estão andando e caem mortos. Adormecem e não acordam mais. Está levando flores para uma enfermeira, e o coração para. Está no ponto de ônibus... Estão morrendo, e ninguém lhes perguntou de verdade sobre o que aconteceu. Sobre o que sofremos, o que vimos. As pessoas não querem ouvir falar da morte. Dos horrores... (...) Mas eu falei do amor... De como eu amei." Liudmila Ignátienko, esposa do bombeiro falecido Vassíli Ignátienko.
Svetlana em seu discurso proferido na cerimônia de recebimento do prêmio Nobel, destacou que não estava sozinha e sim cercada de centenas de vozes que a acompanhavam desde a infância. Também que a verdade não se sustentaria num só coração, num só espírito. Que ela é fragmentada, múltipla, diversa e dispersa pelo mundo. Talvez, a explicação para tamanha carga emocional do texto esteja no fato de que a própria autora também é uma das testemunhas de Tchernóbil. O seu depoimento é mais uma das múltiplas vozes no livro que tentam explicar a catástrofe e seus efeitos na vida e morte da população local. Nós, brasileiros, podemos entender muito bem quando ela desabafa, neste mesmo discurso, sobre algumas afirmações que ouviu do povo russo, tais como: "não se encontra uma pessoa honrada entre nós, mas santos sim", uma afirmação que explica como os políticos são capazes de provocar guerras, gerar perseguições políticas (durante o stalinismo, por exemplo) e outras tragédias históricas, das quais Tchernóbil é apenas mais uma representação.
"Tchernóbil é um enigma que ainda tentamos decifrar. Um signo que não sabemos ler. Talvez um enigma para o século XXI. Um desafio para o nosso tempo. Tornou-se evidente que, além dos desafios religiosos, comunistas e nacionalistas em meio aos quais vivíamos e sobrevivíamos, nos aguardavam novos desafios mais selvagens e totais, embora ainda ocultos aos nossos olhos. No entanto, depois de Tchernóbil algo se deixou entrever. (...) Na noite de 26 de abril de 1986... Em apenas uma noite nos deslocamos para outro lugar da história. Demos um salto para uma nova realidade, uma realidade que está acima do nosso saber e acima da nossa imaginação. Rompeu-se o fio do tempo... (...) Teria sido mais fácil nos acostumar à situação de uma guerra atômica como a de Hiroshima, pois sempre nos preparamos para ela. Mas a catástrofe aconteceu num centro atômico não militar, e nós éramos pessoas do nosso tempo e acreditávamos, tal como nos haviam ensinado, que as centrais nucleares soviéticas eram as mais seguras do mundo, que poderiam ser construídas até mesmo na Praça Vermelha. (...) Hoje cada bielorusso é uma espécie de 'caixa-preta' viva, registra as informações para o futuro. Para todos. (...) Eu levei muitos anos escrevendo este livro. Quase vinte anos. Encontrei e conversei com ex-trabalhadores da central, cientistas, médicos, soldados, evacuados, residentes ilegais em zonas proibidas. (...) Tudo o que conhecemos sobre o horror e o medo tem mais a ver com a guerra. O Gulag stalinista e Auschwitz são recentes aquisições do mal. A história sempre foi a história das guerras e dos caudilhos, e a guerra se tornou, como costumamos dizer, a medida do horror. Por isso as pessoas confundem os conceitos de guerra e catástrofe. Em Tchernóbil, pode-se dizer que estão presentes todos os sinais da guerra: muitos soldados, evacuação, locais abandonados. A destruição do curso da vida. (...) Destino é a vida de um homem, história é a vida de todos nós. Eu quero narrar a história de forma a não perder de vista o destino de nenhum homem. (...) Antes de tudo, em Tchernóbil se recorda a vida 'depois de tudo': objetos sem o homem, paisagem sem o homem. Estradas para lugar nenhum, cabos para parte alguma. Você se pergunta o que é isso: passado ou futuro? Algumas vezes, parece que estou escrevendo o futuro..." Entrevista da autora consigo mesma sobre a história omitida e sobre por que Tchernóbil desafia a nossa visão de mundo.
Literatura ou jornalismo, isso não importa muito quando nos deparamos com a importância de uma catástrofe nuclear (difícil chamar apenas de acidente) sem precedentes na história. Uma obra que está fundamentada na força necessária para a superação e sobrevivência do sofrido povo soviético. Finalmente, um alerta para o mundo sobre a importância do uso controlado e pacífico da energia atômica. Um livro que emociona pelo seu humanismo e é indispensável para entender e refletir melhor sobre o nosso tempo.