Ivan de Melo 23/12/2020
Memória que urge: Primo Levi e os dias de sobrevivência em meio ao horror da Shoah
Todo mundo tem algum livro que ainda não leu, mas conhece tudo a seu respeito, sua sinopse, sua história e por aí vai. “É isto um homem?” de Primo Levi era um destes livros para mim. Durante minha formação como historiador fiz muitos trabalhos e pesquisas as quais o título era referência, sobretudo em estudos sobre literatura de testemunho, memória e a Segunda Guerra Mundial. Esses encontros esparsos acabaram me distanciando da leitura da obra por completo, um atraso que pude tirar este ano.
Como você provavelmente já sabe, Primo Levi foi um químico e escritor italiano que sobreviveu ao encarceramento em Auschwitz-Birkenau. Em 1944 e aos seus 24 anos, Levi foi capturado pelos alemães enquanto lutava junto a partisans contra a ocupação nazista do território italiano. Sua descendência judia o separou de seus companheiros e determinou seu encaminhamento aos campos de concentração. O que temos nesta obra é então o relato dos onze meses em que Levi sobreviveu aos trabalhos forçados e a degradante condição a que era submetido junto a outros milhares de judeus cativos. São descrições das rotinas extenuantes em que homens caíam mortos na neve invernal, das instalações precárias em que homens dormiam amontoados, da má nutrição e das torturas físicas e psicológicas que sofreram homens reduzidos a números, assim como das instalações do complexo Auschwitz-Birkenau, das hierarquias e relações entre prisioneiros e dos meios de resistência em tal realidade.
Separados em textos curtos, suas memórias não seguem uma cronologia especial, mas parecem obedecer a uma espécie de urgência de memória que fizeram deste o primeiro livro escrito pelo autor em 1946, um ano após sua libertação. O valor de suas memórias integra um momento inaugural para a literatura de testemunho, uma vez que Levi descreve sua imersão em um espaço completamente apartado do contexto em que se desdobrava a guerra fora das cercas de arame farpado, o que acrescenta um caráter documental importante para seus textos que passaram a ser lidos desta forma para a compreensão do trauma da Shoah.
Os textos são pesados e é comum terminar cada um deles com um embrulho no estômago (eu li este livro bem devagar, por sinal). É estarrecedor perceber a série de fatores que envolveram a sobrevivência de Levi em Auschwitz. Fatores externos como a sua chegada “tarde” aos campos já nos estertores da guerra, e fatores internos como seu comportamento acautelado que não chamava a atenção das autoridades, mas que era útil para a manutenção de uma rede de amizades, e também o uso de suas faculdades em química que lhe renderam mais tarde uma função “mais confortável”; mas também golpes de inestimável sorte marcaram o caminho de Levi que pegou escarlatina nos dias que antecederam a invasão do Exército Vermelho e graças a isso foi poupado da grande evacuação de Auschwitz conhecida como “marcha da morte” pelo número de prisioneiros assassinados durante o deslocamento. O relato de Levi sobre os dez últimos dias em que ficou preso na enfermaria em pleno inverno congelante com uma série de outros doentes, muitos em pior condição, sem aquecimento e alimentação à espera do resgate soviético desafia qualquer peça de ficção.
Não é apenas a contundência do período histórico de que Levi nos lega um testemunho - e que deveria calar a boca de qualquer teoria negacionista sobre o que foi a Shoah – que faz deste um bom livro, mas a escrita de Levi guarda um requinte que também impressiona e durante sua vida pós-Auschwitz, o autor tentou contornar sua imagem de memorialista e sobrevivente em prol de sua literatura de ficção. Apesar do esforço, ainda conhecemos melhor sua obra pelos escritos sobre a experiência nos campos que marcou toda a sua produção, mas já podemos ter acesso a outras de suas facetas, como a de poeta a partir da coletânea “Mil Sóis: Poemas Escolhidos” publicado por aqui em 2019 pela Todavia. A leitura de “É Isto um Homem?” é fundamental, sobretudo se seu maior conhecimento sobre a Shoah (ou o Holocausto fora do contexto judeu) é baseado nas muitas produções de ficção histórica que existem por aí, e se as palavras de Levi não forem suficientes, sugiro que assista o média documentário “Noite e Neblina” (1956) dirigido por Alain Resnais em uma visita aos campos de Auschwitz dez ano após sua desativação em uma colagem de imagens de arquivo e ruína. Prepare-se para imagens muito fortes.