willian.coelho. 21/10/2020
O que os homens são capazes de fazer com seus semelhantes?
É isto um homem é a obra memorialista mais célebre de Primo Levi - autor que desenvolveu inúmeros trabalhos relatando suas experiências num campo de concentração anexo a Auschwitz. Levi foi um italiano (1919 - 1987) judeu que, próximo aos 25 anos, foi capturado e enviado ao campo - onde permaneceu por quase 1 ano (período em que os soviéticos o libertaram). Em entrevista dada em 1982, afirmou que, ao contrário do que outros autores que discorrem sobre a mesma temática dizem, a sopa aguada de batatas, nabos e couve provida no campo jamais fora ruim: a fome certamente inibe a sensibilidade gustativa, as relações culturais e emocionais com o alimento estão deturpadas. Em uma passagem, ele escreve: “dentro de cinco minutos começa a distribuição do pão - do pão, Brot, Eroit, chleb, pain, lechem, kenyér -, do sagrado tijolinho cinzento, que parece gigantesco na mão do teu vizinho e, na tua, pequeno de fazer chorar.”.
A narrativa do livro está situada entre o momento da captura de Levi, ocorrida no norte da Itália por milicianos fascistas, e o desencarceramento, no fim de janeiro de 1945. Incontáveis fatos desumanos (neste ponto, há uma inclinação por citar “violações aos direitos humanos”; seria um anacronismo, contudo, uma vez que a declaração só foi assinada em 1948) são relatados com grande riqueza de detalhes. Talvez essa minuciosidade toda se deva ao fato de o livro ter sido escrito e publicado ainda em 1947, pouco após o autor conquistar a liberdade. Não há poupança quanto ao grotesco, ao escatológico; em um trecho, homens tentam comprovar seu estado disentérico, ou apenas permanecer mais um dia na enfermaria aquecida: “Os doentes apresentam-se dois a dois e têm que mostrar, ali e imediatamente, que a diarreia continua; dispõem, exatamente, de um minuto, após o qual exibem o resultado ao enfermeiro, que olha e julga”.
Todavia, certamente, o destaque vai para as partes que descrevem o processo da morte interior, da passagem da condição humana a algo não visto nem em espécies da fauna. É algo que perpassa o cinismo, o niilismo: não há perspectivas quanto ao suicídio, não há seres humanos - que filosofam e ponderam sobre suas ações -, há pupas vazias, parasitadas e aniquiladas por um ambiente absurdamente anômalo, artificial, aberrante. “De minha vida de então, só me resta o que basta para sofrer a fome e o frio; já não sou vivo o bastante para ter a força de acabar comigo.” e “Destruir o homem é difícil, quase tanto como criá-lo: custou, levou tempo, mas vocês, alemães, conseguiram. Aqui estamos, dóceis sob o seu olhar; de nós, vocês não têm mais nada a temer. Nem atos de revolta, nem palavras de desafio, nem um olhar de julgamento.” são períodos que demonstram, de modo nítido, a degradação da natureza humana.
É necessário, também, enfatizar um capítulo no qual são apresentados indivíduos que ou sofreram bizarras transformações de personalidade (a fim de sobreviver à seleção natural, ou melhor, à seleção artificial do campo), ou se enquadravam extravagantemente àquele contexto. “Se Elias recuperar a liberdade, acabará confinado à margem do convívio humano, num cárcere ou num hospício.”, discorre o autor sobre um “proeminent” - sujeito que, por se destacar de alguma maneira, gozava de melhores condições de vida.
Um segmento que merece ser citado, dado que mostra com genialidade narrativa a alucinação moral que afetava aqueles homens, demonstra um ancião rezando por não ter sido selecionado para ser enviado às câmaras de Zyklon B ao lado de outro que o fora. “Do meu beliche, no terceiro andar, vejo e ouço o velho Kuhn rezando em voz alta, com o boné na mão, meneando o busto violentamente. Kuhn agradece a Deus porque não foi escolhido. Insensato! Não vê, na cama ao lado, Beppo, o grego, que tem vinte anos e depois de amanhã irá para o gás e bem sabe disso, e fica deitado olhando fixamente a lâmpada sem falar, sem pensar? Não sabe, Kuhn, que da próxima vez será a sua vez? Não compreende que aconteceu, hoje, uma abominação que nenhuma reza propiciatória, nenhum perdão, nenhuma expiação, nada que o homem possa fazer, chegará nunca a reparar? Se eu fosse Deus, cuspiria fora a reza de Kuhn.”.
Para finalizar, deve-se salientar a importância dos textos de Levi como objeto de memória, absolutamente imprescindíveis à historiografia do holocausto. Essa obra, também, tem a capacidade de se comunicar com o momento atual e, mais que isso, representa um papel de caráter reflexivo, principalmente, sobre o que os homens são capazes de fazer com os seus semelhantes.