Cardoso 02/03/2023
A perturbação das memórias de Levi em Auschwitz se dá não só pelo óbvio fato de terem se passado em Auschwitz e de retratarem os horrores nazistas dos campos de extermínio - mas, quase sempre, de faltarem palavras para tal.
Os invernos nos campos exigiam novas e ásperas palavras para fome e frio que não se nossas habituais "fome" e "frio" de quem pulou uma refeição ou esqueceu uma agasalho: precisaria-se de mais tempo para se desenvolver uma linguagem nova, áspera, que explicasse o que era trabalhar com pouquíssimas roupas, no inverno polonês, com fraqueza no corpo de quem se alimentava exclusivamente de uma sopa ridiculamente pobre nutricionalmente e com a consciência da morte se aproximando. Ao mesmo tempo, enquanto o autor tentava, numa ocasião específica, ensinar Dante para um amigo francês, também prisioneiro, seus lapsos de memória e as dificuldades de tradução o acabam enclausurando em seu próprio idioma, país e memórias - e o amigo, vendo-o tocado por retornar à língua pátria ao invés de ser ensinado, o permite que prossiga.
Mais que as próprias pancadas (que Levi, num ponto, diz cinicamente que "não matam", diferente da entrega ao trabalho servil), esse parece ser a principal arma dos nazistas contra esses seres humanos: mantê-los vivos e alienados de tal forma que suas existências pré-prisão se tornem uma lembrança dolorosa. Reunir-se com os colegas gera apenas dor porque os "encontros" tem exponencialmente menos membros com o passar do tempo; olhar para o campo vizinho, em que as mulheres e crianças foram conduzidas, não ajuda a honrar sua memória, mas rememorar que elas foram exterminadas sem que eles pudessem fazer nada; e a vida antes das grades parece tão longínqua e suas lembranças, tão inúteis.
Fortes são os homens que se mantém limpos e dignos, ou alegres e altivos, lutando contra a torturante rotina que os obriga a tornarem-se as cadavéricas figuras que conhecemos dos livros de história. A esses homens, Levi dedica sua hermenêutica, estudando-os cuidadosamente: de onde vem sua força, sua bondade, sua esperança? E ele nunca encontra resposta, ou encontra com muita dificuldade. As personagens, figuras humanas do livro, vem e vão sem grande apresentação, sem despedida, e o que sobra de seu rostos magros são suas ações vistas por seus colegas, que também estão ali para morrer e serem esquecidos.
Mas não foram. Num paralelo com a Torá, que é o registro linguístico e histórico da batalha de um povo por sua origem e por sua terra, É isto um homem? não fornece mitos fundadores que nós criam mil dúvidas em busca de Uma Certeza, mas faz mil perguntas que criam a certeza de que o nazismo tentou silenciar A Palavra sem obter sucesso. O ruir dos muros dos campos permitiu novos sonhos e esperanças aos mais desgraçados humanos na terra, que juntaram absolutamente todas suas capacidades para viver para além de Auschwitz e viveram e este, em especial, escreveu uma das mais impactantes obras q já li.