Diego Rodrigues 31/01/2021
O que move os povos?
Publicado pela primeira vez em formato de periódicos entre os anos de 1865 e 1869, "Guerra e Paz" se tornou não só a Magnum opus do escritor russo Liev Tolstói, mas também uma das maiores obras da história da literatura mundial. A ideia inicial do autor era escrever um romance relacionado à Revolta Dezembrista de 1825, movimento no qual oficiais do exército russo chefiaram soldados num protesto contra a coroação do tsar Nicolau I. Mas para contextualizar a obra, Tolstói descobriu que teria que retroceder um pouco no tempo e tratar da invasão napoleônica na Rússia, em 1812. E que para contextualizar a invasão de Napoleão, teria que retroceder mais um pouco, até 1805. E assim a obra foi tomando proporções colossais, não só em volume como também em profundidade. Tido como um romance histórico, "Guerra e Paz" foi muito incompreendido em sua época. Críticos acusaram Tolstói de não seguir o formato tradicional no qual os grandes romances europeus do século XIX eram concebidos. Suas digressões eram muito malvistas e o autor sofreu duras críticas por sua tendência a filosofar. Olhando em retrospectiva, é compreensível o rebuliço que "Guerra e Paz" causou no meio literário na época de seu lançamento. A obra não segue mesmo a cartilha dos romances tradicionais.
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Tolstói era contrário a ideia dos historiadores de delegar a causa de um acontecimento histórico a poucas pessoas tidas como heróis (ou vilões). O exército francês invadiu a Rússia porque Napoleão ordenou? Mas por que mais de 600 mil pessoas se submeteram a um só homem e, seguindo suas ordens, marcharam até outro país, saquearam, incendiaram e mataram seus semelhantes? O que conferiu tamanho poder a um só homem? Ele realmente foi o único responsável? Essas são algumas das perguntas que levaram Tolstói a investigar mais a fundo a origem das guerras e a lançar um olhar mais humano aos acontecimentos históricos. Diferente dos historiadores, Tolstói acreditava que a força que move os povos e que conduz a marcha dos acontecimentos não vinha dos chamados heróis, mas sim do próprio povo. É disso que se trata "Guerra e Paz".
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Aqui vamos acompanhar uma grande variedade de personagens (históricos e fictícios) reagindo (ou não reagindo) a invasão napoleônica da Rússia. Tolstói vai esmiuçar a sociedade russa do século XIX para que possamos acompanhar de perto essas reações nas mais diferentes esferas. Enquanto a marcha dos acontecimentos segue o seu curso, os holofotes permanecerão virados para o povo. Nas altas esferas, vamos ser levados a grandes salões onde as pessoas estão ocupadas com jantares luxuosos, propostas de casamento, disputas de herança, jogos e intrigas. No front, onde a sombra de Bonaparte se faz mais presente, vamos acompanhar as tensões, o medo, o senso de patriotismo à flor da pele e a tentativas de manter elevada a moral das tropas enquanto essas estavam face a face com a morte. Conforme as tropas francesas avançam em terra russa, as condições de vida anteriores vão se desintegrando e passamos a acompanhar também as esferas mais baixas, como a dos mujiques, dos prisioneiros e das famílias desabastadas. Mas, em meio a tantos personagens, quem é o protagonista nessa história? Aí está, não temos um protagonista. Seria natural imaginar que esse papel seria dado a Napoleão ou ao tsar Alexandre I, mas aqui esses personagens históricos não têm mais importância, por exemplo, do que o príncipe Andrei Bolkónski ou do que o conde Pierre Bezúkhov. O protagonista em "Guerra e Paz" é a teoria do Tolstói sobre a origem das guerras e a marcha dos acontecimentos. Como podemos ver, "Guerra e Paz" não segue mesmo a cartilha dos romances tradicionais
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Confesso que eu vinha adiando essa leitura fazia algum tempo e isso acabou fazendo com que eu criasse altas expectativas sobre a obra. Em alguns momentos tive receio de que isso pudesse atrapalhar minha leitura, mas agora posso dizer que o livro supriu minhas expectativas. Assim como "Os Miseráveis" de Victor Hugo, apesar de volumosa, "Guerra e Paz" não é uma leitura difícil. A escrita do autor é bem simples e o maior desafio fica por conta da grande quantidade de personagens e, é claro, dos nomes russos, que sabemos que podem se tornar confusos, ainda mais quando vêm em quantidade. O cenário muda de Moscou para Petersburgo, do front russo para o front francês, do ponto de vista de um personagem para outro, e leva um tempo até assimilarmos tudo, mas depois de algumas páginas as coisas começam a se encaixar e a leitura passa a fluir. A obra também conta muitos trechos em outras línguas, como francês, alemão e italiano, mas as impecáveis notas de rodapé estão ali para não deixar a gente na mão. Aliás, cabem aqui alguns comentários sobre essa edição da Companha das Letras. Essa é uma edição de luxo em dois volumes de capa dura que, além das notas, conta com tradução direta do russo e apresentação de Rubens Figueiredo, um excelente posfácio de Isaiah Berlin, mapas detalhados e uma extensa lista de personagens e fatos históricos que são citados ao longo da narrativa. Tudo isso muito bem acompanhado por um box bonito e altamente resistente. Sem dúvida, uma edição que faz jus à obra. Todo clássico merecia receber esse mesmo tipo de tratamento.
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Esse é aquele tipo de livro que a gente leva para a vida toda. Personagens como o conde Pierre, a condessa Natacha, seu irmão Nikolai e, principalmente, o príncipe Andrei, são personagens com quem eu criei um vínculo e que deixaram uma marca muito forte em mim, coisa que não acontecia desde que li "Os Miseráveis" e fui tocado por Jean Valjean, Cosette, Fantine e outros. Acho que quanto mais o tempo passar, mais vou olhar para "Guerra e Paz" com carinho e vou me emocionar quando falar sobre esses personagens. Quanto a Tolstói, já o tinha como um dos meus autores favoritos e passei a estimá-lo ainda mais. Admiro e me identifico com muitos pontos da filosofia de vida que o escritor tinha e que é tão intrínseco de suas obras. Em "Guerra e Paz" essa filosofia é vislumbrada pelo príncipe Andrei e alcançada pelo conde Pierre, que procuraram a tranquilidade da alma nos mais diferentes campos, na filantropia, na religião, nos prazeres da vida mundana, nos atos heroicos de auto sacrifício e no amor, mas só a encontraram na simplicidade, na privação e até mesmo na face da morte. Quantas vezes as maiores revelações nos vêm nos momentos de dificuldade? Mas esses são temas de romance de formação. Afinal, o que é "Guerra e Paz"? Difícil classificá-lo, eu diria que para Tolstói a história da humanidade é como se fosse um mar, os historiadores estudam sua vasta superfície, mas a força que move os povos permanece inacessível em suas escuras profundezas. "Guerra e Paz" é um pequeno foco de luz jogado lá.
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