Rosa282 21/02/2024
Um romance para pensar a sociedade e as várias forma de escravização
Como escrever um romance abolicionista em pleno século XIX, época de escravização e transição da colônia para um sistema imperial de governo no Brasil? Uma mulher negra, filha e neta de mulheres alforriados, Maria Firmina dos Reis teve essa coragem, perspicácia e inteligência necessárias para escrever um romance capaz de despertar o espírito abolicionista e ao mesmo tempo dar voz à personagens negros e escravizados, em um enredo, que em sua primeira camada conta uma história de amor impossível para personagens brancos, livres e de uma certa forma "bem nascidos". Um marco precursor para o romance brasileiro, que só teve reconhecimento timidamente ainda na segunda metade do século XX, ganhando notoriedade no século XXI.
Neste texto, Maria Firmina registra a desumanidade dos senhores de escravos, a coisificação humana amparada pela cor da pele que implicaram em constantes injustiças e apagamentos históricos; apresenta a crueldade do tráfico de escravos. Maria Firmina também expõe o poder exercido pelo patriarcado na condução até mesmo das vidas dos familiares, sobre quem o poder e subjugação também é exercido, filhos, filhas e esposas; além disso, a escritora aponta a desvalorização da mulher, que é entendida como um objeto, incapaz de pensar racionalmente, alguém sem desejos próprios. Engenhosamente a escritora apresenta estas relações sociais entre indivíduos brancos, que também podem representar uma forma de escravidão.
Os diálogos e fluxos de pensamentos realizados pelos escravizados no enredo, as vozes negras, demonstram o desejo de liberdade e também os significados que ultrapassam as cartas de alforria, ou posteriormente a lei a Áurea; trata-se da descolonização das mentes, do exercício da liberdade com condições para a dignidade de viver. A escrava Suzana em seu diálogo com o alforriado Túlio expressa de forma clara a liberdade e vida almejadas.
Apesar de ter sido silenciado por um longo tempo, após a sua primeira publicação, este romance ainda assim colaborou para impulsionar o desejo abolicionista no Brasil. Maria Firmina dos Reis, foi uma romancista, anterior à José de Alencar, homem branco, aclamado como precursor do romance brasileiro. Sem retirar os méritos das produções desse escritor, pois as conheço bem, diria que o título de precursor deveria ser dividido com Maria Firmina dos Reis. Felizmente essa talentosa escritora encontra eco na contemporaneidade nos estudos acadêmicos e reconhecimento na literatura brasileira em suas edições nas variadas editoras de livros no Brasil. Diga-se de passagem a edição da editora Antofágica está primorosa!!
Úrsula, não é um romance de ação, mas contém um enredo emblemático para pensar as ações da sociedade no passado, no presente e quiçá no futuro.