Stella F.. 24/03/2022
Quanto vale a hipocrisia?
A Relíquia – Eça de Queirós – Klick Editora (O Globo) - 1997
O autor Eça de Queirós já tem uma vasta obra ao publicar “A Relíquia” em 1887. Um livro da fase realista do autor, onde assim como em outras obras, faz uma crítica social ao excesso de religiosidade, beirando à hipocrisia.
Aqui vemos um autor mordaz, sarcástico e bem-humorado, em uma obra que pode não agradar a todos, devido a conjecturas que faz em relação a alguns eventos sobre Jesus e sua ressurreição.
Na primeira parte do livro conhecemos Teodorico Raposo, que perde a mãe e depois o pai, que é filho de um padre. Após ficar órfão passa a ser criado pela tia Sra. Maria do Patrocínio das Neves (Titi). Uma beata ferrenha, muito rica, seca, velha, e cheia de problemas de saúde. Logo deixa claro ao Teodorico, que para conviver com ela tem que seguir as regras da igreja e não se envolver com mulheres, não se dar a relaxações. Paga seus estudos em Coimbra, e não tem nenhum afeto pelo sobrinho.
Teodorico entende logo, que para obter a herança da tia no futuro, deve “seguir” todas as regras, ser beato igual a tia e não se envolver com mulheres. Só que não. Ele a engana, dizendo que vai a todas as missas, que reza o tempo todo e na sua frente é uma coisa, e longe dela se mete em casa de prostituições e se envolve com várias mulheres. Toda vez que se atrasa para voltar para casa, inventa mil histórias. Na casa da tia convivem vários amigos, que a servem por ela ser rica e influente, principalmente religiosos, a quem ela doa muito dinheiro.
Na segunda parte do livro a tia sugere que ele faça uma viagem à Terra Santa, apesar de o desejo dele ser ir para Paris. Ela quer que ele vá nessa peregrinação para trazer para ela uma relíquia, um objeto santo, que faça com que ela melhore dos seus achaques. Ele vai muito desanimado, mas depois pensa que pelo caminho vai ter liberdade e conhecer muitas mulheres. A primeira parada é em Alexandria onde conhece Mary e ao se despedir dela, ela lhe dá um presente, sua camisola com um bilhete amoroso, envolta em um papel pardo amarrado com uma fita. Seu companheiro de viagem é um estudioso, um arqueólogo chamado Topsius, que está estudando a família de Herodes.
Quando chega a Jerusalém percorre vários lugares santos e vai ocorrer um evento interessante, um diferencial em relação ao restante do livro, que tem um viés mais cômico. Teodorico vai sair em busca da relíquia ideal para a tia acreditar que ele realmente merece estar em seu testamento. Caminhando por todos aqueles montes, templos, estradas, tendo contato com pessoas religiosas, resolve ao passar por uma árvore com espinhos, que tirando alguns galhos, poderia montar uma coroa de espinhos, tal qual usou Jesus em sua crucificação. E o faz, e a embrulha em um papel pardo com uma fita.
Mas aqui, o autor vai rever os eventos que estabeleceram o catolicismo: a expulsão dos comerciantes do Templo; o julgamento por Pôncio Pilatos, a pressão do povo para crucificar Jesus; e por fim a ressurreição. Teodorico vivencia tudo como se estivesse ocorrendo naquele momento, como se ele tivesse voltado no tempo e sentisse tudo à flor da pele. E aqui apesar de ser desdenhoso com à religião, parece ter um pouco de empatia, de compaixão por Jesus. E vai surgir uma dúvida em nós leitores, se Teodorico sonhou ou se o autor o transportou para outro tempo, porque um pouco antes de ele vivenciar tudo, estava sonhando e “acordou” ao chamado de Topsius.
Eu particularmente achei as descrições excessivas e o capítulo muito extenso, sendo cada indumentária e características físicas de todos que passavam pela trama descritas com pormenores. Eu considerei esse capítulo um pouco arrastado, e tive que ter persistência para continuar a lê-lo, o que não tira o mérito da originalidade dele, que vamos ver no futuro em outras obras com o mesmo viés crítico.
Na terceira parte do livro acompanhamos o retorno de Teodorico a Portugal com a relíquia tão preciosa para sua tia. Faz todo um suspense do que seria. Fica famoso pela cidade por ter ido à Terra Santa e quando assistimos ele entregar o embrulho de papel pardo temos uma surpresa e rimos muito de tudo. O feitiço virou contra o feiticeiro. Ele mesmo caiu no próprio engodo. E fica tão surpreso e sem ação que agora não consegue inventar uma história rapidamente, e a partir disso começa a sua decadência. Todos o julgam, e a tia o deserda, ficando a herança para amigos e um outro parente puxa-saco, o padre Negrão. Teodorico vai viver de ganhar o pão revendendo as outras relíquias que trouxe na viagem, ganhando dinheiro com a fé dos outros. E descobrimos um verdadeiro mercado de relíquias na cidade! Casa-se com a irmã de um amigo e assume uma vida de retidão e conclui que não foi hipócrita o suficiente, por isso perdeu a herança.
“Agora, pai, comendador, proprietário, eu tinha uma compreensão mais positiva da vida: e sentia bem que fora esbulhado dos contos de G. Godinho simplesmente por me ter faltado no oratório da titi – a coragem de afirmar!” (pg. 207)