Lucas 27/07/2019
Senso de justiça x rebeldia: As entranhas da Terra como insumos do turvamento das diferenças entre teoria e emoção
Germinal, lançado em 1885, é, definitivamente, a mais substancial das obras do francês Émile Zola (1840-1902), o precursor do naturalismo dentro da literatura. Espelhando-se em seu conterrâneo Honoré de Balzac (1799-1850), que dedicou a vida a escrever uma "enciclopédia" literária da Franca do século XIX, em centenas de obras que compõem a universal A Comédia Humana, Zola buscou o mesmo ao agrupar todo o trabalho de sua vida em um único universo: Os Rougon-Macquart, uma coletânea de vinte obras escritas com um viés naturalista de uma família fictícia, cujos integrantes, espalhados nos mais diversos cantos da sociedade francesa, serviram como instrumentos para uma "varredura" narrativa/descritiva completa da época.
O integrante principal desta família em Germinal é Etienne Lantier, possivelmente um parente de Jacques Lantier, o protagonista d'A Besta Humana (1890), outra das obras da coletânea. A narrativa começa com Etienne caminhando sem rumo à noite no interior de Montsou, uma fictícia cidade do nordeste da França, situada ao lado de Marchiennes, esta real, distante cerca de 30 quilômetros ao sul de Lille, a maior metrópole da região. Sem esperança, com muita fome e frio, Etienne estava em busca de trabalho e acaba por conhecer Boa-Morte, um idoso que trabalhava no período noturno na Voreux, a maior mina de carvão da região que, na época, era rica em minérios (não fica claro em que período exato a narrativa se passa, mas as entrelinhas sugerem uma contemporaneidade com a data de publicação).
Boa-Morte (é explicado no romance a razão desse apelido peculiar) acaba por fazer a ponte com o núcleo narrativo principal, já que ele era o patriarca da família Maheu, que vivia na aldeia de Deux-Cent-Quarante , vizinha da Voreux. Seu filho, Toussaint (seu nome é citado uma única vez em todo o livro) tinha esposa e sete filhos, sendo um deles um bebê e uma outra menina deficiente física (a meiga Alzire). Os demais filhos também trabalhavam na mina, em especial Zacharie (o primogênito) e Catherine, a protagonista feminina da obra.
Como contraponto a este círculo de operários, há os gerenciadores da Voreux, os Hennebeau, que possuíam certo poder sobre a mina, mas estavam submetidos à verdadeira administração, oculta, sediada em Paris. Na maior parte do tempo, eles são apresentados como vilões da história, mas o patriarca da família possui certos dramas domésticos comuns. Há também os Grégoire, que eram acionistas de outras minas na região, mas que não se envolviam nas questões práticas da exploração dos minérios (eles representam, apesar da inocência e bondade superficiais, a face especulativa do capitalismo, que é um entrave a melhor distribuição de renda, por exemplo). Este núcleo mais "rico" é bem descrito com as suas hipocrisias e futilidades próprias.
Etienne serve como um elemento esclarecedor das condições absolutamente insalubres e perigosas envolvidas na extração de minérios. Ao colocar Etienne em seu primeiro dia de trabalho, a narrativa insere o leitor na pele do protagonista, com o seu desconhecimento de detalhes mais técnicos do trabalho a que tinham que fazer, bem como da divisão de tarefas que havia no fundo da mina. Se hoje, em pleno 2019, a extração de carvão e outros minérios é algo complexo e perigoso, o leitor precisa imaginar o quanto isso era penoso há cento e trinta anos atrás, quando não havia praticamente nenhuma automação e o trabalho era quase que totalmente braçal.
Assim, para que não se antecipem detalhes mais reveladores, o primeiro quarto da obra é sucintamente uma descrição ambiental interna da Voreux, que assim como a locomotiva Lison, da já citada A Besta Humana, adquire ares de protagonismo, especialmente para que o autor descarregue sua escrita naturalista. A mina é descrita como um ser vivo, que "se alimenta de carne humana", onde os operários atuavam "em suas entranhas para retirar o próprio sustento". Para o leitor mais leigo em termos de naturalismo literário, é preciso esclarecer que esse movimento, idealizado pelo próprio Zola, era uma intensificação do realismo, que vinha substituindo o romantismo mais pragmático que havia entrado em decadência a partir da década de 1850. Essa corrente (representada no Brasil especialmente por Aluísio Azevedo, em seu ótimo O Cortiço, de 1890) visava estabelecer o homem e sua personalidade como um resultado da influência que o meio social exercia sobre ele. Tal influência, na narrativa, era montada a partir de críticas sociais contundentes: em O Cortiço, a crítica principal se dirigia à ganância, quase animalesca; já n'A Besta Humana, a crítica narrativa de uma forma geral era mais direcionada à formação de uma personalidade que se tornava raivosa e até assassina quando se sentia ameaçada.
Em Germinal, Zola transcende esse aspecto mais interiorizado ao homem; abre mão de psicologias interessantes para direcionar seu ponto de reflexão a todo um escopo social, marcado pelo apego desmedido ao capital. A Revolução Industrial aumentou consideravelmente os ganhos dos donatários dos meios de produção, mas o acréscimo de riquezas não veio acompanhado de um ganho mais coletivo dos operários que eram peça indispensável a este avanço econômico. Isso, acompanhado da secular distinção entre capital e trabalho alimentou a veia crítica de Zola, que usa os personagens da obra para discutir e pormenorizar as diversas correntes de pensamento que se originavam a partir dessa crescente desigualdade.
Antes que o futuro leitor de mente mais prática tenha pensamentos preconceituosos a respeito desse discurso mais social, mais voltado a questões de rivalidade entre patrão e empregado, Germinal traz sim várias menções à obra de Karl Marx (1818-1883), o fundador do pensamento socialista, que gerou profundo impacto em Émile Zola. Todavia, a obra jamais deve ser evitada por isso. Zola conduz a narrativa a questões muito mais existenciais e profundas que a simples divisão entre pobres e ricos ou instruídos e analfabetos: o âmago das condições históricas que acabaram por conduzir àquele estado de total desigualdade é dissecado.
É relevante também mencionar a contribuição social que tais práticas deram a sociedade da época e que repercutem até hoje. Foi por meio de um discurso de maior repartição de riquezas, da busca por direitos iguais que nasceu a regulamentação de todo um sistema que se baseia na exploração da mão de obra alheia (com remunerações por vezes injustas) e no alcance de lucros. Numa sociedade tão sedenta por rotulações como a atual, tal conjunto de ideias é retrógrado e distorcido, mas foi a luta por tais valores que garantiram direitos como a delimitação da jornada de trabalho, o salário mínimo, o trabalho para adolescentes e adultos, o auxílio maternidade... Importante também que se registre que estes direitos foram surgindo aos poucos, somente no início do século XX e a intensificação das injustiças ocorridas na relação empregador x funcionário se deu por volta dos anos de 1860, com a Segunda Revolução Industrial. Temas como trabalho e salário adquiriram uma função social que antes era ignorada, graças à proliferação destes ideais de inclusão social e melhor distribuição de renda.
Germinal possui uma capacidade inigualável de gerar no leitor reflexões amplas, que expandem as dualidades e pontos de vista que são expostos no livro, o que explica essa fuga temática ocorrida acima. Mas o que torna Germinal tão especial é justamente essa capacidade de trazer reflexão sem que seja deixada a narrativa em sua parte fictícia em um segundo plano. O leitor, ao invés disso, sofrerá com Etienne, os Maheu e os demais integrantes da aldeia as agruras de um sistema nefasto, que priorizava lucros obtidos muitas vezes a partir da miséria alheia. Não só a miséria, mas o abandono, o preconceito, a prepotência e a arrogância romantizam a história e chocam, porque elas são a síntese do viés mais voraz e cruel do capitalismo, capaz de agir inescrupulosamente na manutenção do status quo de determinado segmento da sociedade.
Tal viés é baseado na hipocrisia, e até hoje encontra sustentáculos em ideias, como a de que o patrão, por empregar e remunerar funcionários, é tido como uma espécie de "salvador'' ou de ''pai'', o que é totalmente equivocado. Esse ponto, que também aparece em Germinal, assim como as razões para sua refutação, não corresponde, todavia, a essência da hipocrisia que Zola quis demonstrar aos seus leitores. Esta falsidade é por ele ilustrada por meio da Revolução Francesa, de 1789, que possui um misticismo (justo) que transcende os séculos. A história universal não nega que a queda da monarquia teve participação importante da burguesia e da camada mais pobre, mas, ao romancear certos aspectos, deixa algumas pontas soltas. Zola supre essa lacuna expondo quem realmente teve avanços sociais após o processo revolucionário. Esta sua ousadia é digna de nota, porque muitos foram os que escreveram sobre "Liberté, Egalité e Fraternité", mas poucos foram os que se preocuparam efetivamente em descrever para a posterioridade a aplicação e abrangência do lema da revolução na sociedade francesa a partir de então.
Mas a hipocrisia sempre se apresenta em duas faces, e Zola não ignora esta definição em Germinal. Ao partir de um discurso geral de inclusão, de desigualdade e do egoísmo que existia naquele contexto, ele exacerba os sentimentos da massa popular e a razão passa a se confundir com a emoção. Aliás, de uma forma geral, as sinopses da obra retratam essa divisão existente entre o socialismo (como forma de pensamento nascente àquela época, sem as distorções que o tempo e experiências malsucedidas causaram) e a anarquia. Por mais que a obra tenha inúmeros "chamados" à luta por ideais que garantiriam uma melhor condição de vida aos operários, o autor não se incomoda em também ilustrar o ponto mais radical desse discurso, onde o terrorismo supera o ideal ou a rebelião subjuga a greve. Todo esse quadro vai ficando sombrio aos poucos e a maneira sutil com que os próprios personagens lidam com essa transformação é transcrita de forma excepcional. Um exemplo disso é a esposa de Toussaint Maheu, que simboliza bem essa quebra de distinção entre o que se acreditava e a busca animalesca pela implantação dessas crenças. Outro símbolo disso é Etienne, que passa a conviver com uma série de dúvidas quanto à aplicação na prática dessas ideias de liberdade e igualdade. A trajetória individual de ambos os personagens é um elemento comprobatório da isenção parcial da narrativa de Zola, que, de fato, defende princípios esquerdistas, mas acusa os extremos, que, até hoje, sempre precisam ser condenados.
Em suma, Germinal incute no leitor uma torrente de reflexões de ordem social, capazes de instruir na mesma medida que chocam. Isso porque, sob o ponto de vista narrativo, a última centena de páginas (na excelente edição de 1981 da coleção da Editora Abril) é tão repleta de acontecimentos inesperados que consternam até mesmo o mais pessimista dos leitores. Isso torna praticamente impossível que se largue o livro nestes últimos capítulos. Na verdade, a obra toda é assim: o futuro leitor terá diante de si uma história crua, pesada em muitos momentos, mas que prende a atenção pela substancialidade narrativa, capaz de tratar de filosofias práticas e rebeldias animalescas num simples passar de páginas.