spoiler visualizarAldemir2 28/07/2022
E se Bohemian Rhapsody fosse um livro?
Uma dica para quem for ler esse livro é ter estômago forte porque vai ter que ler cenas bastante violentas, e caso queira assistir o filme aí sim você dobra a força desse estômago por que o Kubrick não economiza na violência. Sei que já é um aviso bem pesado para um começo de resenha, mas é necessário ter isso em mente. Essa foi uma leitura que fiz juntamente com uma amiga minha, o que me impediu de ler esse livro inteiro em dois dias ou menos, mas é um experiência interessante pois assim trocamos ideias e, com um livro desse tipo, é bom ver outros pontos de vista.
*Laranja Mecânica* foi publicado originalmente no ano de 1962 na Inglaterra, é sempre importante saber o ano de publicação e a nacionalidade do autor quando se lê um livro profundo como esse, e é narrado em primeira pessoa pelo nosso protagonista Alex, um delinquente que de início tem quinze anos, que irá cometer atos odiosos já nos primeiros capítulos. Dividido em três partes, o romance no começo narra como é a sua vida, seus amigos, o que eles fazem na noite, sabe como é, o básico para os jovens dessa sociedade distópica: um assalto aqui, um espancamento ali, quem sabe um pouco do clássico entra-sai-entra-sai, sem o consentimento da outra pessoa é claro, enfim. Até que ao final da primeira parte ele é preso e traído pelos seus comparsas e na segunda parte é narrada a sua vida na cadeia e o tratamento pelo qual ele passa a fim de perder esse seu lado violento e se tornar um cidadão civilizado e pacífico, que ele se torna (não pela sua vontade própria) e é mostrado as consequências disso na terceira parte. Isso é um resumo bem por cima do livro, ainda entrarei em alguns detalhes mais a frente, mas é necessário saber o básico antes.
Quanto à escrita, com certeza o principal ponto é a linguagem “nadsat” que o autor utiliza na narração do personagem. É uma linguagem que mistura um pouco do inglês com o russo e, que de início, foi bastante estranho e complicado de ler, eu tinha que ir e voltar o tempo todo no glossário presente no final do livro para saber do que ele estava falando (a nota presente no início também se mostra indispensável para o entendimento de algumas expressões), mas depois de um tempo eu me acostumei ao ponto de não precisar mais consultar o glossário, além de algumas palavras poderem ser entendidas com o resto da frase. Então se tornou uma leitura muito fluída, é um livro curto e que instiga a saber o que irá acontecer com nosso “humilde narrador”, mesmo com todas as coisas horrendas que acontece. Lá pela segunda parte, o principal pensamento que ficava martelando na minha cabeça era se eu estava começando a sentir pena do Alex, o que é extremamente complicado de se pensar porque ele é um cara muito escroto, ele estupra duas meninas de aproximadamente dez anos na primeira parte, então não era pra eu sentir pena pelas coisas que ele estava passando. Mas é mais complicado ainda não se sensibilizar com todas as coisas que ele tem que ver ou o que passa depois que sai da cadeia. Esse para mim foi o principal trunfo do autor com essa obra.
Esse é um bildungsroman, ou seja, um romance de formação, e é no último capítulo que o leitor mais se dá conta desse fato. Você ouviu Alex narrando a sua vida desde a juventude e tudo o que ele passou até se tornar um adulto com um filho! Você vê como ele cresce, vê o amadurecimento dele ao final e como tudo aquilo mudou, e para mim é sobre isso que o livro principalmente fala, sobre crescimento e amadurecimento, pagar pelos erros do passado (por mais que os erros cometidos por Alex sejam imperdoáveis) e sair da juventude para a vida adulta. Claro, cercado de violência em uma sociedade maluca.
Para entender um pouco mais de *Laranja Mecânica*, deve se levar em conta o contexto da época. A sociedade, o mundo inteiro se pode dizer, estava passando por muitas mudanças na cultura e no comportamento, e principalmente referente aos jovens. Um dos principais temores sociais que permeava na época era o aumento da delinquência juvenil e podemos ver muitas vezes em alguns filmes da época como o jovem que não é considerado “correto e bom” é uma ameaça para qualquer um. Durante a Segunda Guerra Mundial, a primeira esposa de Burgess foi estuprada por quatro soldados estadunidenses que estavam estacionados na Inglaterra e esse acontecimento foi uma das inspirações para a escrita desse romance (remete também muito a uma das cenas dos primeiros capítulos do livro quando Alex e seu grupo invade a casa de um escritor e estupra a sua esposa na frente dele). O autor ainda afirma que o romance funciona como uma crítica ao behaviorismo que irei falar um pouco a seguir. O behaviorismo surge como um estudo em que analisa o comportamento público como uma forma de estudar a psicologia (sim, estou usando como base a Wikipédia, às vezes ela é útil porque não me lembro de nada disso de quando vi no ensino médio). Acredito que podemos relacionar o processo (chamado de tratamento Ludovico no livro) pelo qual Alex passa com o behaviorismo mediacional proposta por Edward C. Tolman, que apresenta o esquema S-O-R (estímulo, organismo e resposta) no qual ocorre o estímulo que leva a reações internas do organismo culminando na resposta. Tolman então propõe um esquema em que um estímulo deve levar a um comportamento diferente e previsível, no caso de Alex, ele é direcionado a sentir enjoo e vontade de vomitar toda vez que pensa em agredir alguém ou cometer um ato de maldade. Há até uma passagem no livro muito interessante sobre como esse processo de certa forma faz ele perder a liberdade, seu livre arbítrio. Mas afinal, é correto alguém perder o seu livre arbítrio em prol da segurança de outra pessoa?
É um livro que, por mais que seja curto, é altamente profundo e complexo, podendo ser feito muito trabalho em cima dele. Os textos de apoio são essenciais para o entendimento, mesmo que parcial, da obra e mostram ainda mais a importância e como não é uma coisa simples e rasa. O filme de 1971 dirigido por Stanley Kubrick é um clássico e facilmente se tornou um dos meus favoritos, faz poucas mudanças em relação ao livro, no entanto ele corta o último capítulo (ele também não estava presente nas impressões estadunidenses, o que é um absurdo em vários sentidos). Novamente, é um livro que precisa ter estômago forte para adentrar na leitura, mas vale muito a pena.