Renata CCS 19/06/2020"Quem entende o coração de um jovem senão ele mesmo?"--- "Estávamos andando em direção à fonte, o epicentro da ação, quando um casal mais velho parou e ficou abertamente nos observando. Robert gostava de ser notado, e apertou minha mão com carinho. Oh, tire uma foto deles, disse a mulher para o marido distraído, acho que são artistas. Ora, vamos logo, ele deu de ombros. São só garotos." ---
Alguns artistas têm vidas tão fantásticas quanto as histórias de seus escritos, seja na música ou na literatura. Existem também artistas que não tiveram aquela vida de romance e aventuras, mas que ainda assim podemos – e queremos! – entrar em cada página e desfrutar de sua companhia. Isso porque o talento e astúcia da narração pode abrilhantar qualquer vida que julgamos comum.
Essa minha introdução pode soar meio nonsense para quem já leu SÓ GAROTOS, de Patti Smith, sobretudo porque a autora teve uma vida mais que atraente para expor em uma história literária e tanto. O que quero dizer é que, por mais comum que possa parecer a narrativa da vida da artista, não é monótona a maneira como ela nos carrega para dentro de sua história no cenário cultural rico e subversivo dos EUA no final dos anos 60. Patti Smith nasceu para a escrita, e as palavras a adoram!
--- "Quando lamentei minha incapacidade de terminar meus poemas, ele citou Paul Valéry: Os poetas não terminam os poemas, eles os abandonam (...)." ---
A obra foi escrita como cumprimento de uma promessa de Patti fez a Robert Mappethorpe - seu companheiro e, principalmente, amigo de tantos anos – alguns dias antes dele morrer, vitimado pela AIDS. Patti demorou 21 anos para cumprir a promessa que fez ao amigo, a de escrever a história de ambos, mas valeu a pena a espera. Patti usou de toda a beleza que só as palavras podem concretizar para realizá-la. Sorte a nossa.
A narrativa de Patti mostra a descoberta do amor, amizade e sonhos de dois artistas, duas pessoas que se cruzaram e se apaixonaram. Eram artistas natos, e sabiam disso, mas estavam em busca da arte que os faria ganhar a merecida notoriedade. Patti conheceu Robert em 1967, logo após chegar a Nova Iorque. Ele pintava e fazia colagens. Ela escrevia e desenhava nas horas vagas, quando não estava trabalhando para bancá-los. Ele ficava em casa, a maior parte do tempo, criando. De vez em quando vazia uns bicos e programas para conseguir dinheiro. No final, ela se tornaria roqueira e escritora, e ele, fotógrafo. Ela se casaria e se tornaria mãe. Ele e seu parceiro morreriam de AIDS. Tudo isso é contado em meio ao cenário da contracultura que varria o "american way of life", em meio a dureza dos tempos difíceis na Nova Iorque boêmia dos anos 60. É justamente essa trajetória pessoal, suas experiências e dificuldades, dialogando com o quadro mais amplo que faz SÓ GAROTOS quebrar a sua especificidade e ir além, muito além. Patti Smith teve uma vida valiosa o bastante para que o universo das mudanças históricas a seu redor não lhe passasse despercebido, nem de sua percepção aguçada nem de sua narrativa cativante.
--- "Costumávamos rir de nós mesmos quando crianças, dizendo que eu era uma menina má tentando ser boa e que ele era um bom menino tentando ser mau. Com o passar dos anos esses papéis se reverteriam, depois reverteriam de novo, até que acabamos aceitando nossa natureza dual. Contínhamos princípios opostos, luz e trevas." ---
O que mais impressiona em SÓ GAROTOS é a honestidade de Patti. Ela descreve suas vidas de modo transparente: moraram na rua, passaram fome, o sexo como meio de sobrevivência, pequenos furtos... ela não economiza descrições sobre aquele microcosmo. É ainda mais impetuosa ao narrar a fase fascinante de morar no Chelsea Hotel. Lá ela acompanhou o entra e sai de famosos, como Janis Joplin, Jimi Hendrix, Iggy Pop, Grace Slick do Jefferson Airplane, e Lou Reed, ainda parte do Velvet Underground, bem como a memória ainda morna da estadia de Bob Dylan. Aliás, tratou de Janis Joplin em uma de suas crises de depressão, mas isso aparece no livro na mesma proporção que teve em sua vida: um único parágrafo.
Quem me conhece, sabe que sou beatlemaníaca e, para mim, a mais célebre história de amor era sobre o encontro de John Lennon e Yoko Ono. Para quem não sabe como se conheceram, Lennon foi a uma galeria de arte em Londres. Uma das obras apresentadas era bem simples: uma escada e, ao final dela, uma lupa. John subiu, olhou pela lupa que estava voltada para o teto. Encontrou apenas uma palavra: "sim". Daí em diante, todos conhecem a história e o desfecho. Mas com Patti e Robert, meu encontro foi diferente. Ainda não eram famosos como Lennon, mas isso não os manteve afastados. Eles cresceram e desbravaram o mundo juntos, sempre fiéis um ao outro, primeiro no amor, que cresceu tanto que se tornou amizade, o amor na sua forma mais pura.
--- "Tudo havia começado com a Lua, a Lua, inacessível poema. Agora os homens haviam andado sobre ela, pegadas de borracha em uma pérola dos deuses." ---
O livro é cativante, comovente, transborda emoções em cada página. SÓ GAROTOS é para aquelas pessoas que ainda acreditam no amor. Não no amor clichê de comédias românticas ou novelas, mas aquela experiência espiritual que carrega compromisso e comunhão.
Diria que SÓ GAROTOS não é uma biografia que poderíamos chamar de tradicional. Parece-me mais um livro de memórias, um fluxo de consciência, um romance de formação em molde de crônicas, uma expansão de pensamento e uma explosão de personalidade. Tinha tudo para cair no lugar comum: uma cantora de rock que morou anos com um fotógrafo, conheceu alguns ícones dos anos 60 e 70, gostava de escrever poesia e um dia acabou sendo descoberta e ficou famosa. Mas o brilhantismo de Patti permitiu o mergulho em páginas e páginas de uma história de vida que merece – e foi – bem contada.
--- "Não havia ninguém ali exceto a enfermeira, e ela nos deixou a sós. Sentei na beira da cama e segurei a mão dele. Ficamos assim por um longo tempo, sem falar nada. De repente ele me olhou e disse: Patti, será que a arte nos entendeu? Virei o rosto, sem querer pensar naquilo. Eu não sei, Robert. Não sei. Talvez tivesse, mas ninguém podia se lamentar por isso. Só um tolo lamentaria ser compreendido pela arte; ou um santo." ---
Em tempo: quando SÓ GAROTOS venceu o National Book Awards em novembro de 2010, a primeira coisa que Patti pensou foi: "Que ótimo! Assim, muito mais gente vai conhecer o verdadeiro Robert!".
É um daqueles livros que a gente precisa ter. Deixe-o sempre à mão para os momentos que precisar de inspiração. Leia-o para a vida.