litera.liza 07/08/2024
Profundo
Esse é um daqueles livros que me deixam a sensação de talvez não ter aproveitado tudo o que ele tem a me oferecer. Aqueles livros que vão direto pra lista de releituras futuras. E eu quero fazer essa releitura depois de ler “O que fazer”, do filósofo russo, Tchernichevsky. Memórias do subsolo é tido por muitos como uma resposta a esse livro e as notas de rodapé da Editora 34 ajudam muito nisso. Logo no início a gente tem aqui uma nota onde se destaca que um longo trecho aqui seria, na verdade, uma provocação ao Tchernichevsky.
Bom, mesmo com essa sensação de ter deixado escapar algumas coisas por falta de conhecimento prévio, esse é um livro que merece ser lido e aproveitado o tanto quanto for possível.
Dostoievisk escreve esse livro por volta dos seus 40 e poucos anos, depois de já ter vivido uma vida. Já tinha se formado engenheiro, já tinha participado de diversos grupos políticos, já tinha sido preso e condenado à morte, já tinha se livrado dessa execução nos últimos minuto e muitos outros acontecimentos que você pode conhecer lendo um pouco sobre a vida atribulada do autor. A esposa dele teve tuberculose e é quando ela ta muito mal de saúde que ele escreve Memórias do Subsolo e foi a primeira obra que ele escreveu depois do período da prisão.
A gente tem aqui uma obra dividida em duas partes, em dois capítulos. Quando ele publicou, originalmente, essas partes foram publicadas, também, separadamente.
Então, a primeira parte, sob o titulo de O subsolo, é mais curta e trata-se de um monólogo focado no fluxo de consciência do narrador-personagem. Onde ele vai expor pra gente muito do que ele pensa da vida, da sociedade e da sua própria existência.
E, na segunda parte, ele vai trazer três historias da sua juventude, que explicam bem como ele se tornou o homem que ele é hoje, esse homem do subsolo.
Esse homem, de 40 anos, que vive recluso, em meados do século XIX, um ex-funcionário público, que parou de trabalhar após receber uma herança, e que começa a obra se descrevendo como um homem mau, desagradável, que sofre de doenças que não tem a intenção de resolver, segundo ele mesmo, simplesmente por raiva.
E ele é mesmo bastante desagradável, e é também cínico. E esse cinismo deu um toque de humor ao livro, que talvez não se apresente pra todo leitor. Pode ser que você não ache nada engraçado aqui, até pq, não é pra achar mesmo. Mas eu dei sonoras gargalhadas em muitas partes.
A gente passa a acompanhar a mente e as reflexões, então, desse homem amargurado, ressentido, e que vai, ao longo do livro, apresentar inúmeras contradições. Se, ora ele se diz superior a tudo e todos, ora ele deixa escapar sua fragilidade e sentimento de inferioridade, se antes ele se apresentou como mau, depois ele se culpa por não ser coisa alguma: nem bom, nem canalha, nem honrado, nem herói, entre outras tantas contradições. O próprio narrador se autodescreve como um paradoxalista.
E esse sujeito desagradável, contraditório, auto-destrutivo, tem consciência de que o que o exclui da sociedade são suas próprias ideias e maneira de encarar as questões da vida.
E pra gente entender a origem dessas ideias, a gente precisa entender, minimamente, o contexto social e político de quando o livro foi escrito. Em 1864, a Rússia estava passando por um período significativo de reformas sociais e políticas. Uma série de reformas para modernizar o país estavam acontecendo. Nesse contexto, Memórias do subsolo vai, então, refletir as tensões e contradições da sociedade russa desse período. E Dostoievski vai aqui questionar, sutilmente ou não, algumas doutrinas filosóficas que, naquele momento, se estabeleciam através de leituras racionais, modernas e científicas das coisas. Ele critica, então, sem nomeá-los, os filósofos que defendiam que a ciência explica todas as coisas, incluindo o comportamento humano.
Dostoievski através desse narrador-personagem, vai deixar claro que acha isso tudo uma grande bobagem. Acreditando que nós não agimos de maneira inteiramente racional e, sim, baseados em nossas vontades e desejos.
Ele rejeita a ideia de que os seres humanos podem ser completamente racionais ou que podem ser moldados por ideais utópicas. Ele vai explorar a irracionalidade e vai argumentar que a natureza humana não pode ser reduzida a uma simples fórmula racionalista.
E aí Temas como alienação, consciência, desejo e razão, vão ser explorados aqui através das reflexões da mente complexa desse homem.
A gente vai entendendo aqui que o narrador tem um apreço muito grande, e defende com unhas e dentes, a ideia de que o ser humano prioriza, sobretudo, a sua liberdade, o seu desejo de agir como bem quiser.
E ele, inclusive, se considera melhor do que a maioria das pessoas, pq ele acredita que, apesar de viver recluso e afastado da sociedade, ele faz isso de maneira consciente e como uma forma de resistência à essa sociedade que ele diz tanto desprezar. Ele acredita que dessa forma ele ta livre das convenções sociais.
Essas três histórias que ele vai contar na segunda parte, de quando ele tinha uns 20 e poucos anos, consolidam essa ideia de que o ser humano é muito mais irracional e movido por seus interesses próprios, mesmo que as consequências disso não sejam só positivas. Como é o caso do homem do subsolo, esse homem frustrado e descontente com tudo.
Como todo bom clássico, esse é o livro que a gente consegue trazer muito pra nossa atualidade. Um livro que vai despertar diferentes sensações. Enfim, se você é fã de leituras mais psicológicas e filosóficas, vai sem medo.