Ramon.Amorim 31/10/2022
"Afinal, é bobagem viver só na peste. Na realidade, um homem deve lutar pelas vítimas. Mas, se deixa de gostar de todo o resto, de que serve lutar?"
A primeira vez que li A peste (1947), de Albert Camus, foi na sequência de O estrangeiro (1942) e a leitura não engrenava. Não era possível que o mesmo autor tivesse escrito dois livros tão diferentes em tantos sentidos. A atmosfera de ambos não conectava, assim como as energias dos seus protagonistas. Depois entendi que Camus, assim como o fez com Mersault, em O estrangeiro, estava usando Dr. Bernard Rieux, de A peste, para construção de uma mensagem bastante diferente da transmitida por Mersault (daí o estranhamento e a dificuldade de conectar o mesmo autor).
A peste lembra mais em estilo e conteúdo romances de José Saramago como o Ensaio sobre a cegueira, Ensaio sobre a lucidez e As intermitências da Morte, com o rompimento brusco do cotidiano de uma cidade por um evento extraordinário. Em A peste, a cidade litorânea de Orã, entre os meses de abril e janeiro do ano seguinte, é assolada pela doença que dá nome ao livro. A epidemia faz com que o governo federal mande fechar a cidade e um grupo reduzido de pessoas de Orã, à frente o Dr. Bernard Rieux, assume o desafio de ir além das obrigações funcionais, entregando-se com firmeza ao combate à doença e adotando medidas sanitárias para conter sua propagação.
Frente a esse contexto, Camus focaliza a nossa atenção nos personagens masculinos que estão no entorno de Dr. Rieux, em meio às gradações que a peste vai produzindo sobre a cidade e que a própria cidade, com seu clima ora chuvoso ora quente e seco, naturalmente evoca no ânimo dos seus moradores. Nessa dinâmica, os personagens vão também se transformando no convívio uns com os outros, momento em que o autor nos transmite algo relevante a respeito da natureza moral das chamadas grandes ações. Cada um deles tem uma razão interior diferente, mas aparentemente há algo exterior e construído socialmente que os unem na causa a que se dedicam.
Os dois pioneiros do projeto da comissão sanitária, Dr. Rieux e Jean Tarrou, têm diálogos grandiosos, realmente à altura de um grande escritor e grande filósofo como Camus. A cena do segundo sermão do padre Paneloux, após este assistir à morte horrível de uma criança vítima da peste, é outro ponto alto do livro, obrigando o padre a rever seu primeiro sermão do início da epidemia, o qual foi totalmente desconectado do sofrimento concreto das pessoas.
Em vez do alheamento e do humor cáustico de O estrangeiro, em A peste temos um romance de personagens comprometidos, de um humanismo sincero e contagiante. Eles criam um campo moralizante em torno deles, forçando os que estão no entorno a rever ou reafirmar seus próprios valores. Isso tudo de uma forma natural, coerente com o desdobramento do enredo e da trajetória pessoal de todos eles. A emoção de Rieux contemplando o rosto envelhecido do amigo, Castel, é aparentemente simples e também curta, mas é justamente nesses instantes que Camus provoca a explosão literária que torna de uma pequena cena uma revelação comovente sobre a existência.