Renato 27/12/2019
Bartleby além de Bartleby: Melville e o Século XXI
Lendo Bartleby e algo mais
Se há alguma obra que nos transforma na literatura, ela certamente passa por Herman Melville. O curto 'Bartleby' é suficiententemente genial e enigmático para operar no leitor um questionamento que vai além do enredo da sua própria vida.
Muito já se comentou das semelhanças de Bartleby com 'O Castelo', de Kafka, com Borges, e muito da literatura moderna e contemporânea. Seu texto angular e sintético, suas parábolas repletas de significâncias nos remetem a ‘metamorfose’, a Beckett, ao 'O estrangeiro’ de Camus e muitos outros. Não é preciso dizer que é óbvio, mas tem que ser repetido porque o livro foi publicado em 1853, muito antes de qualquer menção à palavra desconstrução, quando a fé nos pilares da civilização e nas suas conquistas humanitárias sem credos ou deuses imateriais explícitos ainda reinava .
Não há qualquer spoiler nesta reflexão. E se houvesse algum, não faria a menor diferença. Simplesmente porque o enredo da novela e o desenvolvimento da trama são menos relevantes, complementares à simplicidade aparente do texto de Melville. O que importa ena novela é uma frase repetida diversas vezes, insistentemente, assim como no poema ‘O corvo’, de Edgar Allan Poe: 'Quoth the raven, nevermore”. Já Melville nos repete como uma argola infinita: 'I would prefer not to.' Expressão traduzida de diversas formas. 'Eu prefiro não', mais fiel ao texto original, em primeira pessoa, mas num caráter mais pessoal, menos universal. Aparentemente Melville parecia querer expressar algo mais universal, menos pessoal e desta forma mais significativo, o que aparece em traduções menos fieis e literais como 'É melhor não'.
Bartleby é o escrivão que a cada pedido, a cada questionamento e solicitação nega a demanda, e responde: 'I prefer not to', sem qualquer justificativa. Ele não quer e não faz. Ele nega o mundo, não cede.O escrivão é o homem que se opõe ao mundo, irredutível, sem confrontá-lo. Ao invés de transgredir, ele se apodera (Agamben) e nega. Age através da recusa à ação, é o homem da anti-ação. Sua atitude não é a da falta de ação da passividade, ao contrário, ele tem poder e resiste com força, não se entrega. Solicitado a sair do escritório, ele persiste. Ele não se movimenta, fazendo força para persistir. Este é o 'Bartleby' que seduz. O da resistência passiva.
A novela não é uma brincadeira, nem uma historinha contada somente para se divertir, apesar de que pode ser lida desta forma, habilidade que poucos escritores conseguem atingir. A interpretação deste texto claramente depende da maturidade do leitor. É um livro para se ler em diversas fases da vida. Como uma história divertida, aos dezoito anos, como uma reflexão sobre o sentido das nossas ações, décadas mais tarde.
“Nada irrita mais uma pessoa honesta do que a resistência passiva. Se o indivíduo ao qual se resiste não for desumano, e o que resiste, inofensivo, então o primeiro, com a maior boa vontade, vai se empenhar para que a sua imaginação construa com caridade aquilo que foi impossível resolver com a razão.”
— Bartleby, o escrivão - uma história de Wall Street de Herman Melville
Se Bartleby é um livro sobre resistência e poder, então qual é o objetivo da resistência que não confronta? Em primeiro lugar, Melville discute que a inação é uma resistência mais forte que o confronto, algo praticado quase 100 anos depois com Mahatma Gandhi. O poder não se exerce somente pelo confronto, mas também pela manutenção da integridade do indivíduo, a não corrupção pelo mundo. Esta barreira é uma resistência que demanda mais força que a oposição em confronto.
Nenhuma postura é mais ameaçadora para o líder, seja de uma nação ou de uma empresa, do que ‘I would prefer not to'. Especialmente quando não é a resistência de um único indivíduo. Qualquer gestor sabe que poder é fé. As pessoas têm que acreditar no líder. Se elas não se subjugam, não se submetem, não cedem em troca de algo e acreditam no projeto que vai alem dos ganhos materiais então o líder e a empresa simplesmente não existem. Esta é a fórmula mais simples para o fracasso. Nenhum líder deseja a oposição, mas a prefere à resistência passiva.
Mas não sejamos inocentes. Não basta dizer não ao mundo, não interagir e persistir inviolado em seus princípios. O mundo é uma interação do indivíduo ao seu meio, onde um molda o outro. Fechar-se significa também impedir a interação e viver num ambiente narcísico, um grupo de mídia social.
Calar-se sem negociar, desaparecer do horizonte dos outros por virtuosismo não transforma o mundo. Transforma o indivíduo. Sem se opor à resistência ativa, é possível pensar num Bartleby completamente contemporâneo, é o primeiro herói narcisista do pós-modernismo, autorreferente e intransigente, que luta sozinho, autocentrado, sem a organização em grupos. O indivíduo isolado, em seu hedonismo, acreditando na superioridade de seus princípios, fechado às negociações, resistindo à força do mundo ao qual ele se opõe, sem efetivamente transformar. Numa primeira leitura podemos dizer que a resistência passiva de Bartleby é um sintoma do narcisismo do mundo de hoje, talvez por isto ainda seja tão vivo por empatia e identidade.
Por outro lado, ´I would prefer not to' não significa passividade ou entrega, nem egoísmo. Do ponto de vista social, dentro de um grupo, negar é mais poderoso que se opor, especialmente se a coletividade nega. Aquele que nega não aceita o outro, sua liderança. Quando o líder não é visto como líder, ele não existe, algo muito mais pesado do que ser visto como um líder justo. Um líder mal visto ainda é visto como líder, um líder negado não existe. Por isto a resistência passiva tem o potencial de ser muito mais ameaçadora para o poder dominante. Todo poder é simbólico, sem simbologia não há poder, a não ser pela força. Não se importar com o olhar do outro significar negar o EU dentro da sociedade, não existir. Assumir que a sociedade não importa é doloroso para os outros, porque também eles perdem a importância, também eles deixam de existir. Negar o mundo, não aceitar e se fechar às suas demandas. Aina que continue sendo um gesto narcisista, mas o narcisismo e o hedonismo tem um poder de desagregação maior que qualquer oposição.
A resistência passiva é portanto um ato político necessariamente anti-político. Anti-polis, narcisista, onde o Eu nega o Outro sem concessões. Se nega o outro, nega a estrutura, o poder, a sociedade.
Mas isto pode ir além da resistência. Quando a resistência passiva nega também o político, então ela se torna individualista e autodestrutiva. Por isto é importante pensar em Bartleby além de Bartleby, um Bartleby transplantado para o século XXI. Um mudo futurístico para Melville, onde o narcisismo gera uma resistência passiva disseminada e não articulada dentor da sociedade. Um mundo feito de milhões de Bartlebys que não constroem carreira, que não se vinculam, num mundo líquido grandes oposições. Vivem num mundo líquido, negando suas estruturas, mas circulando dentro delas por pura necessidade de sobrevivência. Onde mediante a oposição prefere-se o 'I would prefer not to', não fazer, descasar, desempregar, desistir, mudar. Mundo intransigências e pouca capacidade de vinculação e adaptação. Troca-se, nega-se ao invés de se lutar para transformar.Um mundo de Bartlebys desapaixonados. Ou apaixonados pelos, seus prazeres e diversões. O século XXI traz uma nova geração carregada de um anti-institucionalismo espontâneo. Perdeu-se a fé nas instituições, nos governos, nos professores universitários, nas carreiras. É melhor estar sozinho, resistir à 'podridão das instituições' negando-as.
O segundo ponto importante para se abordar é a forma mais extremada de resistência passiva narcisista, quando o indivíduo diz 'I would prefer not to' para toda a sociedade, torna-se intransigente, refém de seus desejos mais primários e narcisistas. Na verdade este Bartleby não é o de Bartleby de Melville, ele consome é um escravo do seu hedonismo, mercadologicamente determinado. Desregulado, faz o que quer, e não aceita limites, regula a expressão do Outor porque não tolera ser recriminado. Este abominável Homem dos prazeres, que só faz o que lhe satisfaz, resiste a toda demanda que lhe causa desprazer, não cede, não faz. Não se vincula. E talvez por isto é um pedaço fragmentado de uma sociedade que perdeu sua força de agregação porque ela não tem motivos para se agregar. A força de uma civilização nasce da fé que ela tem nela mesma, na capacidade que possui de se agregar, de ceder para um bem comum. O mito do sacrifício é essencial em todas as sociedades, pois é ele quem valida a existência do coletivo, a renúncia de um desejo individual em prol de uma vida em comum. Por mais funcional e viável que seja, uma sociedade baseada somente no indivíduo não possui força porque não tem liga. Não tem interseção nem concessões. Esta é a sociedade que nos mostra Houellebecq em 'Submissão', uma sociedade tão fragilizada pelo hedonismo, que consegue ser facilmente suplantada pela força moral de uma civilização mais agregada, mas menos poderosa do ponto de vista tecnológico e econômico.
O século XXI é um mundo de Bartlebys, de personagens que resistem por motivos diferentes daqueles contados por Melville, mas ainda assim fechados ao mundo, seja para melhorá-lo, seja para ignorá-lo. Não podemos deixar de lembrar que só existimos enquanto estamos no mundo. Nosso mundo de Bartlebys é um mundo de indivíduos que não existem. Aproveitam.