Sergio330 22/08/2023
Raskolnikov suicida a alma, esquecendo-se de matar o corpo
Começo essa resenha dizendo que, sem dúvidas, Crime e Castigo foi um dos livros mais difíceis que já li. Isso, entretanto, não retira a qualidade desse livro. Não sei nem por onde começar. Ao praticar o tão hediondo crime, passamos por uma síncope que o personagem principal externaliza. Dessa forma, Dostoiévski prova sua excelência, em demonstrar o reflexo de uma filosofia sobre o próprio filósofo que a criou. Raskolnikov possui uma filosofia até de certo modo, interessante. Ele, uma pessoa nova, consciente do tesouro que pode gerar ao mundo, da sua sabedoria e afins, é posto em uma sinuca de bico; entra em uma realidade problemática, em virtude de intensa depressão e miséria. Dessa forma, cogita a separação da humanidade, procurando compreender porque Napoleão tem o direito de matar e ser louvado, e ele não. Posto sob o jugo de uma velho usurária, nojenta e decrépita, cogita matá-la para roubá-la e assim fazer sua vida, mostrar ao mundo que ele não é um piolho (nomenclatura dada àqueles simplórios que são somente simplórios na terra), e sim um Napoleão. A partir daí, Dostoievski tece e explicita a mais profunda psiquê humana, de maneira tão bem desenvolvida que é chocante como esse autor já tinha consciência de comportamentos de sociopatas em uma época que esses estudos ainda estavam florescendo. A partir daí, Raskolnikov sabe, e nós leitores sabemos que ele sim, matará a velha usurária. Indiretamente, acreditamos que Rodia (a partir daqui chamarei Rasolnikov de Rodia) terá sucesso em eliminar a velha, dada a sua imensa inteligência e dialética. Um dissabor acontece, e ao estar dando machadadas grotescas na velha nojenta usurária, a doce irmã dela aparece; a pobre e tão doce Lisavieta. O duplo assasínio acontece e a partir daí a narrativa aumenta de densidade psicológica. Rodia, no fim do romance ressalta, que ali ele não mata a velha, ele matou a si mesmo. A velha, ele simplesmente eliminou, ele nunca deixou de acreditar que ela merecia esse desfecho. A partir daí, Rodia suicida a alma, e seu corpo continua ali, tentando viver. A narrativa se torna embebida em loucura, dores e paranóias, porque , à medida que Rodia adoece, a narrativa adoece, se torna difícil e ébria. Escrita inteligentíssima, que, nos coloca sobre o jugo da perspectiva de Ródia, na perspectiva humana do assassino que, se torna tão paranoico que no começo servimos como contra-prestação as suas paranóias; afinal de contas, Rodia é sim, inteligente. Entretanto, algumas de suas paranóias são sim fundadas e ele está sendo perseguido. Mas a maior perseguição que ele sofre é da sua própria consciência, ele é o seu próprio castigo, martírio e dor. Adoecemos e sofremos junto com o protagonista, que se castiga ao se menosprezar e se tornar paranoico, tentando indiretamente se ressaltar, se mostrar, indiretamente àquele grupo de policiais que aquele crime cometido possui o ardil de alguém extremamente competente e acintoso. Rodia se faz visível porque estava cansado de ser ignorado, afinal de contas, ele não é um piolho, teria um direito subentendido de matar a velha usurária. A narrativa se desencadeia, depois de muito tempo truncada na paranóia do protagonista, que se derrama sobre todos a seu redor que o considera um maluco por sempre tentar se relacionar ao crime cometido. Entretanto, mesmo tentando se positivar frente a sociedade, ele começa a se negar para si mesmo, duvidando de sua própria integridade e competência, não consegue levar adiante o ardil de se alçar à sociedade com o dinheiro do assassinato, ele só quer acreditar que não é um piolho e que o que ele fez tem importância para a sociedade. Ele nunca se considera errado em matar a velha, nunca se sente culpado por matá-la, mas se sente culpada por não dar andamento à ganância de se tornar um Napoleão, e não ser um piolho. Rodia se torna doente, indiferente, um apático a sociedade, afinal de contas, nesse período ali só anda a carcaça dele, a procura de sua humanidade.
É realmente, de uma profundidade demasiada, procurar a humanidade de Rodia que se torna, sobremaneira, ensimesmado e maluco. A narrativa se torna assustadora e torcemos para Rodia mesmo sem saber o que a ele merece ser destinado. A questão é totalmente e moralmente humana. A culpa de Raskolnikov não é do crime, afinal de contas ele não se arrepende da hediondez ou de simplesmente ter matado a inocente Lisavieta, que em nenhum, ou poucas vezes é mencionada ou levada à dialética de Rodia. Ser colocado sobre um ponto de vista extremamente intrínseco ao contrário que é o desenvolvimento da alma humana nos coloca uma questão extremamente incrível da capacidade de Dostoievski. Admiração total a ele. Rodia assume, se entrega às autoridades policiais, mesmo não compreendendo a noção de castigo estatal que a ele foi imposto, não reconhece seu crime, mas reconhece sua pequenez e nela se ergue, fazendo daquele presídio o SEU presídio, o seu castigo nos seus próprios termos, mas seu castigo para expiar-se, humanizar-se, e sugar a alma que ele, indiretamente, suicidou-se de si mesmo. Incrível.
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