tbbrgs 12/09/2022
O patriarcado velado da tradição sertaneja
"Manuelzão e Miguilim" é o segundo livro de autoria roseana com o qual tenho contato. O primeiro foi "Primeiras Estórias", livro de contos, com o qual eu já havia me apaixonado pelo seu singular linguajar e pelo cativante mundo sertanejo que Rosa conseguiu habilmente recriar. Não foi diferente com "Manuelzão e Miguilim", e, por já estar iniciada no universo roseano, consegui ainda mais me envolver com a leitura, os personagens e os acontecimentos.
Campo Geral, ou Miguilim, se você preferir, narra as desventuras desse menino nascido no coração do sertão, o Mutúm. Sua primeira tristeza foi perder sua cachorra preferida, Pingo de Ouro, gratuitamente dada por seu pai a um bando de tropeiros. Mas infelizmente essa não foi a sua última tristeza. Com o olhar lúdico de uma criança frente às alegrias e às adversidades da vida, Guimarães Rosa escreve a história de Miguilim como nenhuma outra - leve, lírica, sensível, singela -, ao mesmo tempo em que traz à tona elementos intrínsecos à brutalidade do sertão e à exuberância de sua natureza (o canto dos pássaros, os vaga-lumes noturnos, o lumiar das estrelas, os papagaios berrantes, os frondosos buritis, as refrescantes veredas).
Por outro lado, em Uma estória de amor, acontece a festa de Manuelzão, em que todo o povo residente da região da Samarra vai prestigiar a inauguração da Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Manuelzão é reconhecido na Samarra como uma grande referência, por ser quase dono das terras que ali se cultivam e se pastoreiam. Mas ele não é o único personagem que se faz presente. No decorrer da narrativa, muitas outras figuras também marcam nosso imaginário, como Joana Xavier, contadora de histórias; o velho Camilo, sem-teto; Adelço, filho único de Manuelzão; João Urúgem, meio gente, meio bicho; Leonísia, dona de casa e esposa de Adelço. Todos esses e outros personagens permeiam a narrativa e a festa, em meio ao vai-e-vem dos pensamentos de Manuelzão, que, do presente, vão ao passado, e, do passado, retornam ao presente, indo até o futuro, para recontar as histórias das vidas dessas pessoas, todas no sertão nascidas, crescidas e mortas, como no caso da mãe de Manuelzão.
Apesar de todo o universo roseano, o universo sertanejo, ser, em si, um universo regido por raízes patriarcais, o que mais me fascinou nessas duas novelas do escritor é a forma como ele consegue, através de sua narrativa poeticamente peculiar, seu linguajar torto mas bonito, expor toda a miséria da qual o povo do sertão nasce e a qual ele é destinado a sofrer. E essa miséria envolve, muitas vezes, o machismo, o abuso e a violência moral, psicológica e física, advindos de toda a instrução que o sertanejo carece. Além disso, há também a miséria advinda da brutalidade do próprio sertão: a fome, o calor, a doença, as longas distâncias, a forte seca em contraponto às destruidoras chuvas, o árduo trabalho na roça pela subsistência.
Guimarães Rosa, portanto, uma vez mais foi capaz de criar duas obras esplêndidas, tanto por explorarem a cultura tradicional do povo sertanejo, por meio da escrita, da linguagem e dos fatos descritos, quanto por escancarar as portas do patriarcado velado que ainda existe nessa tradição.