Mariana 06/03/2020a História foi pega no contrapé, desguardadaO Deus das Pequenas Coisas é um livro sobre a fragilidade, sobre a intimidade e, ao mesmo tempo, sobre a impessoalidade da história humana. Um micro representando o macro. As Pequenas Coisas seriam o íntimo de cada um, enquanto as Grandes Coisas seriam a conjuntura política e social.
"Esse Grande Deus rugia como um vento quente, e exigia obediência. Então o Pequeno Deus (íntimo e contido, particular e limitado) se afastava, cauterizado, rindo entorpecido de sua própria temeridade. Habituado à confirmação de sua própria insignificância, ele se tornava flexível e realmente indiferente. Nada importava muito. Quase nada importava."
É isso que é tão cativante no livro: fala de gente como indivíduo, como ser único, mas fala de gente como peças da História, que impõe leis sobre quem deve ser amado, quanto e como. História com H maiúsculo.
Mas tá, sobre o que é o livro? É sobre uma família indiana, especialmente focado nas duas crianças da família: os gêmeos Rahel e Estha, seus percalços e a vida das pessoas ao seu redor.
O jeito como a história foi contada, cheia de poesia e com muitos personagens dentro de uma família, me remeteu ao Cem Anos de Solidão, do Gabo; e o fato dos protagonistas serem dois gêmeos me lembrou de Dois Irmãos, do Milton Hatoum. Em termos de estilo e narrativa eu diria que Arundhati Roy construiu um mix dos dois.
Gostei muito do jeito como a autora capta o jeito como as crianças enxergam o mundo. Por exemplo, quando a mãe deles, Ammu, usa a palavra "devidamente" por estar brava, os irmãos acham que essa palavra soa como um poço fundo. Essa analogia e tantas outras são de uma sensibilidade graciosa que me encantou muito. Uma das cenas de amor do livro é uma das mais lindas que eu já li na ficção!!!! Fiquei arrepiada com a entrega e com o medo que envolve os dois personagens.
"O homem parado na sombra das seringueiras, com moedas de sol dançando no corpo, carregando a filha dela nos braços, levantou os olhos e viu o olhar de Ammu. Séculos de concentraram em um único momento evanescente. A História foi pega no contrapé, desguardada. Descascada como a cobra descasca a pele velha. Suas marcas, suas cicatrizes, suas feridas de velhas guerras e os dias de andar para trás sumiram."
A autora consegue imbuir na história poética do livro críticas veementes, apesar de sutis. Fala da prostituição de costumes locais para o turismo estrangeiro, da emigração dos indianos para países estrangeiros, da violência policial (cujo sistema faz do policial em si não só o opressor mas também uma vítima), do marxismo como narrativa que se adaptou bem às regiões de fé cristã (por conta da similaridade do maniqueísmo), entre tantas outras.
"...porque sabia, aquele Pessoal do Hotel muito esperto, que o cheiro, assim como a pobreza dos outros, é meramente uma questão de se acostumar. Uma questão de disciplina. De Rigor e Ar-condicionado. Nada mais."
Sobre o autoritarismo e a violência, Arundhati é fatal:
"Sentimentos de desprezo nascidos de um medo incipiente, inidentificável: o medo que a civilização tem da natureza, o medo que os homens têm das mulheres, o medo que o poder tem da impotência. O impulso subliminar do homem de destruir aquilo que não pode dominar, nem deificar."
Do. caralho. Livro mais lindo do ano até agora. Recomendo demais a leitura!