Rafael 26/04/2021
?- Você, Quaresma, é um visionário...?
Homem desprovido de ambições materiais, ordeiro e de hábitos precisos como um "fenômeno matematicamente determinado", o major Policarpo Quaresma seria talvez o que o sociólogo Robert K. Merton classificou como ritualista, uma das adaptações resultantes das tensões entre as estruturas social e cultural da vida comum.
Sobretudo, "Policarpo era patriota", e "o que o patriotismo o fez pensar foi num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa". Com o ímpeto de um jovem, buscava o major convencer todos acerca da necessidade de o povo brasileiro resgatar, com rigor e pureza, valores e tradições nacionais. Nunca tivera êxito nesse intento. "E desse modo ele ia levando a vida, metade na repartição, sem ser compreendido, e a outra metade em casa, também sem ser compreendido".
"- Você, Quaresma, é um visionário", com desprezo teria lhe dito o marechal Floriano Peixoto, então Presidente da República que Policarpo apoiara, durante a Revolta da Armada (1891-1894). Sucedidos alguns eventos, não tardaria para que nosso protagonista chegasse, desiludido, ao seu triste fim.
Essa célebre obra de Lima Barreto, publicada em 1911, para além de revelar a mente confusa de um povo que "ama sua pátria, mas não ama o que ela é de verdade, ou antes de amar o Brasil, ama o próprio nacionalismo", como sugere o músico Criolo, traz em seu bojo o apego brasileiro ao mandonismo (o sadismo do senhor perpetrado contra o escravo tem-se feito sentir socialmente, ao longo dos séculos, até na forma de cultos cívicos, como o do "Marechal de Ferro", uma referência ao abrutalhado e rude autoritarismo de Floriano Peixoto), fortes tensões raciais (Lima Barreto denunciou o racismo enquanto elemento estrutural da desigualdade social brasileira) e traços de pioneirismo do autor no campo literário (o romance é permeado de passagens em que o discurso direto livre marca uma oralidade de características negra e popular, de uma memória da colônia que se refere à experiência negra e periférica da modernidade brasileira, e de reconhecimento de diferentes regimes de saber).
Mais uma vez, minha experiência de leitura veio através da edição da Antofágica. Esse exemplar possui uma tipografia peculiar, belas ilustrações, textos de apoio e muitas notas de rodapé, além de uma seção fantástica de notas complementares (usei como fonte de pesquisa, inclusive).