spoiler visualizarMaria 15/09/2015
Torpe inseto, brilhante parasita
"Nunca lhe sucedeu, passeando em nossos campos, admirar alguma das brilhantes parasitas que pendem dos ramos das árvores, abrindo ao sol a rubra corola? E quando ao colher a linda flor, em vez de suave fragrância que esperava, sentiu o cheiro repulsivo de torpe inseto que nela dormiu, não atirou com desprezo para longe de si?"
Como um frenesi de sentimentos, Lúcia nos faz ver o mundo de uma forma única. É uma mulher complexa, diferente dos ideais da mulher romântica: pura e virginal. Forçada a vender o corpo aos 14 anos de idade, na decorrência de um surto de febre amarela e com a família adoentada, a menina até então chamada Maria da Glória transforma-se em Lúcia, essa mulher amarga, com desprezo pela sociedade e por si mesma.
Em uma prosa narrada por Paulo, um nordestino recém chegado ao Rio de Janeiro, em busca de um lugar na corte, percebemos a transformação de Lúcia, um ser miserável, como o parasita que nomeou o o livro, em uma mulher redescobrindo sua mocidade.
É a quase inimaginável história de amor que se passa entre Paulo e Lúcia que torna o livro tão comovente. Afinal, seria impossível acreditar em um a paixão verdadeira algures um pobre sem carreira definida e uma cortesão desalmada e sem esperança.
Podemos notar um evidente contraste entre os valores sociais cultuados na época. De um lado, o desejo de ingressão na sociedade por parte de Paulo, de outro o desprezo pela mesma. Lúcia demonstra, sobretudo, nojo do próprio corpo e dos homens que pagam para tê-lo. Outro aspecto que pode ser analisado é o "flash back narrativo", introduzido em todo o texto, já que é escrito no formato de carta. Em partes da história também há passagens onde são marradas lembranças das personagens.
Em certo parágrafo do livro, Paulo deixa explícita a sua admiração por Lúcia. Das duas partes se enxerga o amor como forma de redenção: Lúcia, que tinha esse "verbo rápido", sempre emudecia na presença de Paulo; e ele mesmo sabendo que ela era uma cortesã, a via pela bondade de seu coração, que era escondida pelas joias caras e vestidos de seda transparentes dados pelos seus amantes de momento. Pode-se ver a recusa de tal ostentação diante do amor de Paulo, já que agora ele era tudo que importava.
De início, vê-se desejo carnal, mas no decorrer desta trágica história de amor, a cortesão se torna reclusa, rejeitando o corpo e admirando a alma, sempre em busca de um amor espiritual, que infelizmente não alcança. Apesar de se tornar novamente pura de coração, não há escape para alguém que já teve seu corpo vendido. Por isso, morre com um filho no ventre, culpada e receosa demais para dar a luz, posto que as lembranças obscuras de seu passado voltavam para assombrá-la.
"Vive no mundo alguém mais?" é a mensagem refletida pelos olhos de Lúcia a partir do momento em que conheceu Paulo. Em uma narrativa que poderia se tornar facilmente fútil e corriqueira, vemos um universo surpreendente criado por José de Alencar, que mistura crítica social a um romance incomum e belo. O amor cultivado pelos dois protagonistas nos deixa pasmos, admirados com tamanho esmero de ambos. A pergunta que permanece na mente do leitor é: "Poderia algo assim ocorrer nos dias de hoje?", e após analisar por alguns segundos percebemos que este tipo de amor, que junta corpo e espírito, é eterno enquanto dura.