spoiler visualizarAna Caroline 29/11/2014
"Lucíola" de José de Alencar
Lucíola, publicada em 1862, inaugura os romances urbanos de José de Alencar. Junto a “Senhora” e “Diva”(1864) compõem um trio que pretende traçar o perfil da mulher ideal. Para o crítico Rodrigo Gurgel esta, sim, é a melhor obra de José de Alencar, “ainda que seja uma releitura de A Dama das Camélias” (p.27) e o é tão descaradamente que o autor coloca este livro nas mãos da heroína, lá pela página 102 (as referências de página estão de acordo com a edição referenciada no final deste texto), ele diz:
“Era um livro muito conhecido – A Dama das Camélias. Ergui os olhos para Lúcia interrogando a expressão de seu rosto. Muitas vezes lê-se não por hábito ou distração, mas pela influência de uma simpatia moral que nos faz procurar um confidente de nossos sentimentos, até nas páginas mudar de um escritor. Lúcia teria, como Margarida, a aspiração vaga para o amor?”
Lucíola é, então, a história daquele que se denomina “a prostituta arrependida”. O livro introduz que toda esta história se saberá por cartas que o protagonista, Paulo, tardiamente enviou a uma senhora confidente. Ele se justifica: “Receei também que a palavra viva, rápida e impressionável não pudesse, como a pena calma e refletida, perscrutar os mistérios que deseja desvendar-lhe [...]” (p.11)
Paulo, provinciano, muda-se para Corte onde viverá inicialmente, na companhia do pouco virtuoso amigo, Sá. Num dos primeiros passeios que com ele dá, encontra-se e a primeira vista impressiona-se com a beleza (e algo mais) da heroína, Lúcia. Descobrirá em pouco correr do tempo ser ela uma prostituta, o que comprova sua ingenuidade, pois outro qualquer de primeira olhada notaria. Naquela noite “quando apaguei a minha vela ao deitar-me, na dúbia visão que oscilava entre o sono e a vigília, foi que desenhou-se no meu espírito em viva cor a reminiscência que despertara em mim o encontro com Lúcia. Lembrei-me então perfeitamente quando e como a vira pela primeira.” (p.17)
Em grupo, ressaltamos, como afirma Rodrigo Gurgel, também a comentarista da obra repara: José de Alencar parece preocupado em justificar certos trechos, para a época, demasiado “eróticos”. Nota-se no fato de criar uma organizadora mulher para a narrativa (aquela a quem se confiam as cartas de Paulo) e também em citar exemplos de outras obras com temas “pouco convencionais” como no trecho:
“Entretanto, se a senhora não conhece as odes de Horácio e os amores de Ovídio, se nunca leu a descrição da festa de Baco e não tem notícia dos mistérios de Adônis ou do rito afrodíseo das virgens de Pafos que em comemoração do nascimento da deusa iam certos dias do ano banhar-se na espuma do mar e oferecer as primícias do seu amor a quem mais cedo as cobiçava; se ignora tudo isto, rasgue estas folhas ou antes queime-as […] Se ao contrário apreciou esses trechos admiráveis da literatura clássica, pode continuar a ler, pois não achará imagem nem palavra que revolte o bom gosto: sensitiva delicada dos espíritos cultos.”
Conversando com Lúcia algumas vezes, logo estavam ambos em sua cama. Como prostituta, Lúcia não se negava a deitar com homens apresentáveis, como mulher, estava apaixonada por Paulo e recusava-se a receber dele pagamento. Na maioria das vezes incompreendida por ele, as vezes era tida como esnobe, prepotente, avarenta ou fria, enquanto, em fato, queria Alencar nos apresentar um anjo caído.
Todo o enredo se desenrola em três meses, e nessas velozes semanas Lúcia encontra resgate da sua condição pecadora. Vendendo o que tem acomoda-se numa casa simples, num local sossegado. Nega-se terminantemente a voltar a deitar-se com o homem amado e está convencida que essa penitência faz algum sentido. Comentávamos no grupo com que deformidade ela concebia o cristianismo e com que moralismo sem proporções guiava suas decisões. A personagem que Alencar nos tenta transmitir é de uma alma tão caricaturalmente angélica que não é sequer verossímil. Chega a dizer ao homem amado: “Quero unir minha irmã ao santo consórcio de nossas almas. Formaremos uma só família; os filhos que ela te der serão meus filhos também; as carícias que lhe fizeres, eu as recebei na pessoa dela!” (p.152)
Rodrigo Gurgel demonstra que Alencar foi incapaz de mostrar o amor ou a religião verdadeira. Para Gurgel Lúcia nunca foi amada por Paulo, mas foi desejada, idolatrada e, diga-se até, endeusada. Apenas isso justificaria que se resignasse a uma castidade imposta pelos caprichos dela e mesmo assim a visitasse todos os dias e ature ouvir dela certas sandices como aquela do casamento com a irmã mais nova.
Uma das razões que impede do casal apaixonado de viver o amor que parecem ter é a sociedade e suas palpitações. “O livro caminha na contramão do romantismo, pois a heroína não se liberta das amarras sociais”, e o mesmo acontece ao protagonista, o tempo todo impelido, coagido e dirigido pelas opiniões alheias. (p.29) A heroína construída por Alencar, Gurgel atribui adjetivos como: “histérica, neurótica, masoquista e desviada”. O amor de Alencar é anti-romântico, e seu cristianismo, deformado.
Referências
GURGEL, Rodrigo. Muita Retórica, Pouca Literatura: De Alencar a Graça Aranha. Campinhas, SP: Vide Editorial, 2012.
ALENCAR, José de. Lucíola. Comentários e notas de Luciana Miranda Penna. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 2005. (Série Lazuli clássicos)
site: http://www.vlogoteca.com/desafio-literario/1-jose-de-alencar