spoiler visualizarBarbara 21/03/2014
Livro e Filme - De dentro pra fora!
A Primeira vez em que ouvi falar sobre a angustiante e inquietante sensação despertada em quem viu este filme, pela intensidade da descrição em minha cabeça formou-se a imagem de um filme completamente sangrento. Sangrento para além da tinta carmim grudada na casa de Eva!
Passou-se um tempo e devo admitir que tenho lá minhas resistências a tudo que "quadradamente" não me cativa de cara, mas juro que não foi por isso que demorei tanto a cair na tentação do sangrento da psicopatia. Foi a falta de tempo e o cansaço mental para a concentração, mas soubesse eu que se trataria de uma das melhores abordagens literárias do século XXI com que tive contato o teria me entregado bem antes.
Ao ver o filme sai satisfeita e surpresa, (já que em minha opinião não há nada de sangrento), mas queria aqui agradecer profundamente as pessoas que me incentivaram a ler o livro!
E aqui não se trata apenas de uma simplória e banal análise de que " o livro é melhor do que o filme", os dois são de ótima qualidade, mas o filme fica muito mais interessante depois que se ler o livro. É a prova encantadora de como há mais, e muito mais, de cada artista em um filme e em qualquer arte, do que puramente o seco do roteiro. O que mais me abalou foi o fato de ser o filme TÃO fiel à história e aos fatos descritos no livro e ao mesmo tempo ser tão diferente.
Nunca sei o quando devo sinalizar com relação aos spoiller que há em meus textos e resenhas, eu odeio ler spoillers, mas sempre ao sinalizar, depois percebo que minhas vagas palavras nada falam sem o contexto e desta forma não se trataria bem de um "spoiller". Leiam desconfiados e espero que fiquem curiosos.
"Precisamos Falar Sobre o Kevin" é um filme que retrata a experiencia de uma família, focalizando a história de uma mãe, Eva, e diferentes momentos de sua experiência com seu filho Kevin. E é ai que começa o curioso do que relatei.
Ao ver o filme percebi algo curioso, não era nada do que imaginei! Imaginei uma criança e um jovem sangrento e cruel, arrancando os olhos de criancinhas e torturando e mantendo os familiares como reféns dentro da própria casa,algo parecido com Funny Games de Michael Haneke. E então logo pensei , depois de ver,que não era tão aterrorizante. Então pensei: Kevin faz tudo isso, tudo o que imaginei, mas não da forma como imaginei! Talvez seja isto que nas pessoas tenham causado tamanho impacto!
Eu sou dessas que não me sinto bem com um simples torção no pé alheio ou arranhão um pouco mais elaborado, mas me intriga de maneira diferente as complicações da vida humana em todos os seus conjuntos. O fato é que vi o filme e imaginei o que imagino sempre que ouço na TV a cada notícia de massacre social praticado por adolescente, cada vez mais constante: Para onde os valores de sociedade está levando a humanidade?
E continuo pensando o mesmo, mesmo depois de todas as voltas que caminhou minha cabeça com o enredo. Outro fato também, é que; mesmo eu feminista declarada e completa, sai do filme imaginando: "Muito de tudo é culpa da mãe!"
E é nisso que quero me focar, em como está implícito em cada forma de transpor cada conceito em cada obra de um conjunto de valores de quem a expressa.
Devo admitir que não fiz maiores pesquisas acerca deste filme, e por isso posso arriscar meu palpite de que sua adaptação e direção é de responsabilidade de um homem ( verificarei após terminar este post, e me comprometo a nada modificar.rs), não que isto baste, uma mulher talvez expressasse de tal maneira, bem como sabemos a existência de homens que tão sensíveis às causas femininas, mas está feito e mantido o palpite.
Desafio alguém a ter visto o filme e não ter pensado parecido, " A culpa é muito desta mãe no que este menino se transformou" e quanto a isso quero agraciar o livro.
Não sei nada sobre os créditos do filme, mas do livro eu fiz questão de ir buscar. Lionel Shriver é sua autora e não sei se ela se autodeclara uma autora feminista, mas sei que tem outras obras que tratam também de forma nada vulgarizada e muito bem profunda de temáticas de gênero, e sei também que um desses jornais internacionais a considerou uma espécie de Virginia Woolf do século XXI. Merecido! (Baseado no pouco que conheço desta autora.)
Lionel Shriver conduz a história de Eva e de Kevin de uma forma brilhante! Através de cartas de Eva dirigidas ao marido Franklin, ela expõe toda a confusão, o sofrimento, e a complexidade profunda com relação à existência e intensidade da culpa da personagem em relação ao ocorrido com Kevin. Lionel conduz tão bem , que eu mesmo já tendo visto o filme e já sabendo o contexto dessas cartas, estive o tempo todo numa dúvida oculta , como se não soubesse do final, como se o filme fosse uma fraude.
Através da figura da personagem Eva, mãe de Kevin, é possível perceber toda a angustia, cobranças e muitas das questões que envolve a mulher moderna em sociedade. Eu que sempre me vi questionando como neste mundo TUDO é sempre culpa da mãe, pude me encontrar perfeitamente com Eva. A construção de Eva feita por Lionel é daquela que ao longo da leitura te faz nunca querer pôr um filho no mundo, traz aquela sensação sufocante que do é o esperado da maternidade na sociedade, ela que muitas vezes diz se sentir enquanto grávida, não mais um indivíduo,mas "uma propriedade pública, um útero ambulante".
Ah como nos arrependemos junto com Eva de ter abandonado aquele diafragma! Como lamentamos todo o rumo que foi tomando sua vida! Mas o interessante, é que o que ocorreu com Eva é basicamente o que ocorre com praticamente todas as mulheres que se deparam com a maternidade, e ai que digo ser o papel do brilhantismo de Lionel, pois através da narrativa e da história de Kevin, ela da visibilidade ao que ocorre com as mulheres em geral na sociedade todo dia e ninguém parece perceber.
Eva se sente sufocada com a maternidade de Kevin, ela uma bem sucedida empresária do turismo acostumada a percorrer o mundo, é obrigada a se limitar à vida do lar ao tornar-se mãe, e ao mesmo tempo muito julgada pelo marido por sua postura quanto à esta maternidade. O curioso é que Flanklin mesmo sendo o perfeito pai da relação que sempre desejou a paternidade, ao contrário da mulher, não é o o escolhido para ficar em casa para cuidar do filho. Por que?
Isso Lionel também não deixou passar batido, ela coloca a questão em alguns pontos da obra, como quando deixa claro que Eva sempre ganhara mais do que o marido e era a responsável pela fortuna da família, e em outro momento diz que Flanklin não é "do tipo do que fica em casa cuidando do filho enquanto a mulher trabalha" , isso mesmo sendo ele a figura do pai perfeito da família e o unico a desejar a parternidade dos dois. No entanto a autora, propositadamente ou não, não aprofunda mais a questão.
O fato é que o Kevin do livro parece menos vítima do que o do filme, e a Eva do livro é profundamente mais compreensível, e isto também é compreensível. Não quero dizer com isto que o filme esteja deturpado, não é isso, é que para mim o filme adquire um outro ponto de vista.
É fato que no livro Kevin parece muito mais "psicopata" do que no filme, no filme ele se parece mais com um menininho querendo chamar a atenção da mãe matando diversas pessoas, também não digo que no livro ele também não a tenha como público, já que o próprio chega a admitir.
O Kevin do livro parece ter muito mais admiração do que raiva da mãe, como demonstra ser o sentimento do Kevin do filme. O livro retrata toda a visão de Eva, do filho, do marido e da vida. Ficava eu imaginando o tempo todo, ou melhor, só em alguns momentos entre a leitura, se em nenhum momento não estaria Flanklin certo ao defender o filho de todas as acusações da mãe,, algo bastante dificil de se fazer, já que a opinião de Eva nos contamina profundamente como verdade única do que se passa com Kevin.
O filme parece trazer um olhar de fora do que foi ocorrido, e mesmo tendo feito Tilda Swinton um ótimo trabalho ao interpretar Eva, devendo para isto ter lido várias vezes o romance, as personagens são bem diferentes, não querendo com isso desmerecer a película, digo novamente, não sei se a intenção era realmente mostrar uma história de outro ponto,mas mesmo não o sendo, foi o que aconteceu, na minha opinião.
A Eva do filme é mais submissa às questões que ocorreram com sua vida. No livro, mesmo relatando toda sua dor e os anos que envelheceu em tão pouco tempo, sua cabeça ainda permanece erguida ao manter as visitas constantes ao filho na prisão para menores, parece muito mais do que uma simples "obrigação social de mãe" que ela se sinta na obrigação de cumprir.
Eva passa o tempo todo buscando sua relação com tudo o que Kevin fez, e o tempo todo ela diz não querer se eximir da culpa. Ela a considera, mas como todos nós, não está convencida de sua culpa.
Até onde no mundo as coisas são culpa da mãe e/ou da mulher?
Também fica claro no livro que todo seu questionamento com relação à maternidade se concentra na experiência com Kevin e digo; Seria isto por ele ser seu primeiro filho, ou por ser ele realmente diferente?
Pois ela ao experimentar a maternidade pela segunda vez apresenta outra experiência e chega a relatar que " tudo seria muito menos doloroso se ao menos a tivessem deixado ficar com Célia!"
Novamente tenho que agraciar a autora, por relacionar tão bem todos os seus questionamentos. Creio que muito mais do que tratar do assunto referente aos massacres sociais realizados por crianças e adolescentes, que tem sido um debate constante na sociedade atual, a autora quis discutir realmente os valores sociais. Assim como também a famosa psicopatia tão em voga hoje em dia.
Seria mesmo Kevin um incurável psicopata desde o dia em que nascera demonstrando uma constante "indiferença em relação à vida" e rejeitando desde o primeiro dia o seio da mãe? Ou estaria ele desde cedo retribuindo à rejeição e usando a indiferença como arma? E de quem seria a culpa de tudo isso? Da mãe? De Kevin? ( Quanto a isso pode-se analisar com curiosidade a mudança completa do comportamento de Kevin ao ficar com dez anos de idade profundamente doente e "sem forças" para sustentar sua indiferença e crueldade, se mostrando extremamente dócil)
O interessante também é que através da história de Eva ( e Kevin) a autora mostra a necessidade profunda, talvez dela enquanto mulher ou da própria sociedade, de enfrentar de frente esta questão, já que a Eva foi negado tudo o que lhe poderia ser uma fuga deste seu enfrentamento. Ao fim, tudo foi exterminado. Sem Flanklin, sem Célia, sem empresa, só restou ela e Kevin!
Tudo fica bastante descrito na última consideração de Eva ao fim do livro:
"É só isso que eu sei. Que, no dia 11 de abril de 1983, nasceu-me um filho, e não senti nada. Mais uma vez, a verdade é sempre maior do que compreendemos. Quando aquele bebê se contorceu em meu seio, do qual se afastou com tamanho desagrado, eu retribuí a rejeição — talvez ele fosse quinze vezes menor do que eu, mas, naquele momento, isso me pareceu justo. Desde então, lutamos um com o outro, com uma ferocidade tão implacável que chego quase a admirá-la. Mas deve ser possível granjear devoção quando se testa um antagonismo até o último limite, fazer as pessoas se aproximarem mais pelo próprio ato de empurrá-las para longe. Porque, depois de quase dezoito anos, faltando apenas três dias, posso finalmente anunciar que estou exausta demais e confusa demais e sozinha demais para continuar brigando, e, nem que seja por desespero, ou até por preguiça, eu amo meu filho. "
Sinto que me encantou de tal forma esta obra que eu poderia fazer diversos textos com focos diferentes de análise em relação a ela.Eu escolhi esta,mas quem sabe um dia volto com outra!
Super recomendado a todos!
Grata!
site: http://veiasefasciculacoes.blogspot.com.br/2013/08/precisamos-falar-sobre-o-kevin-livro-e.html