Isabel 01/12/2012“É sempre culpa da mãe, não é verdade?”, disse ela, bem baixinho, pegando o casaco. “Aquele menino deu errado porque a mãe dele bebia, ou se drogava. Ela deixava o garoto solto na rua; ela não ensinou a ele o que é certo e o que é errado. Nunca estava em casa quando ele voltava da escola. Ninguém nunca diz que o pai era um bêbado, ou que o pai nunca estava em casa quando o garoto voltava da escola. E ninguém jamais diz que alguns desses garotos não prestam e pronto. Não vá você acreditar nessa balela. Não deixe que eles ponham nas suas costas essa matança toda. (...) É duro ser mãe. Ninguém nunca aprovou uma lei que diz que para alguém ficar grávida tem que ser perfeita. Tenho certeza de que você tentou ao máximo. Você não está aqui, nesse fim de mundo, numa bela tarde de sábado? Você continua tentando. Se cuide, meu bem.”
Eva Khatchadourian tinha somente dois desejos quando era criança: sair da cidade onde nasceu (onde sua mãe agorafóbica fazia a casa da família de sarcófago) e ter um homem que a amasse. O primeiro desejo foi logo realizado e bem ao pé da letra – difícil encontrar um país que a destemida escritora de guias de viagem de sucesso não tenha visitado – assim como o segundo, resumido no seu casamento feliz com Franklin Plaskett.
Franklin era a antítese do homem que Eva imaginara que casaria: um americano patriota típico, era estranho para a mulher de origens armênias que odiava tudo que lembrasse a brega, ignorante e doente terra do tio Sam. Mas o fato era que Franklin e Eva eram tão felizes que chegou a sufocar. Eles precisavam de responsabilidade, de desafio, de algo novo.
Eles precisavam de um filho.
E Kevin foi estranho desde que nasceu: chorando insistentemente o tempo inteiro, parecia não se interessar por ninguém ou por nada. O pai sempre tomava partido do filho, impedindo a mulher de discipliná-lo – coisa difícil, já que Kevin é de uma apatia ímpar que o torna um dos personagens mais interessantes com quem tropecei. Eva, acostumada com essa apatia (o garoto toma cuidado de não demonstrá-la na frente do pai – afinal, ele precisa de um protetor) e com a crueldade do filho, não tem problemas em acreditar quando, aos quinze anos, ele assassina sete colegas e dois funcionários da escola com seu arco-e-flecha.
Em Precisamos falar sobre o Kevin, Lionel Shriver critica o que crê ser o principal problema dos Estados Unidos: ninguém quer ser culpado. Narrado em forma epistolar por Eva, que escreve ao marido sobre seus dias com Kevin, o livro é assustador e franco como um tapa – ao contrário de seus compatriotas, Eva não reluta em assumir seus erros, mesmo acreditando que a correção dos mesmos não levaria a melhora nenhuma por parte de seu filho.
Não me lembro de um romance epistolar que eu tenha lido e não gostado; muito pelo contrário. Precisamos falar sobre o Kevin não é exceção: a narradora tem uma visão de conjunto, misturando sua vida pós-catastrofe com seus dias com Kevin, reconstruindo-os de forma perfeita.
Continuo achando o filme excelente, exceto por um erro, pequeno e ao mesmo tempo enorme. Meu sentimento por Eva, na maior parte do livro, foi pena, mas em alguns trechos, não pude deixar de sentir raiva por um pequeno fato:
ela ainda amava Kevin.
Não há nada que cause mais desconforto do que uma mãe que não ame o filho – categoria que Eva foi encaixada pela acusação do processo que sofreu por negligência materna. Durante algum tempo, acreditamos, e até mesmo torcemos para que isso seja verdade – como alguém pode amar alguém que lhe fez tanto mal? Mas não.
A primeira suposição vem do fato de Eva não ser uma mãe tradicional: desde os primeiros meses de gravidez, ela detestava o fato de não ser mais Eva, e sim “a grávida”. A autora aproveita o estado de sua personagem para fazer uma crítica ácida ao modo da sociedade ocidental de idealizar a figura materna – o quote com que abri o post (dito pela mãe de um criminoso preso na mesma penitenciaria juvenil que Kevin) é um exemplo disso. Ainda que isso faça os leitores arrancarem os cabelos de raiva, Lionel Shriver, no ápice de sua maravilhosa habilidade com as palavras, coloca os estilhaços do amor de Eva por Kevin de forma crível e suave, como se não houvesse alternativa.
E talvez não houvesse mesmo.
Publicada originalmente em http://distopicamente.blogspot.com.br