Luísa Coquemala 24/04/2019
Gente, que livro! Depois dessa leitura, Dostoiévski é oficialmente meu romancista preferido. A comparação sempre me parece inevitável, então lá vai: de Tolstói, considero Ana Karênina e A morte de Ivan Ilítch duas obras primas. Gosto muito de Guerra e Paz e Ressurreição, mas já os enxergo como se estivessem um degrauzinho abaixo em relação ao meu gosto. Isso, na verdade, me parece um movimento natural. Não dá pra amar todos romances que se lê de um só autor. Da mesma forma, gosto de Doutor Fausto e de A montanha mágica mais que de Os Buddenbrook.
Só que com os romances de Dostoiévski eu não consigo. Entre Crime e Castigo, Os irmãos Karamázov, O idiota e Os demônios, eu não consigo imaginar uma escadinha na minha mente. Todos são excelentes e todos têm seus pontos altos. Não consigo pensar em outro escritor que tenha escrito tantos romances tão bons. Talvez Proust em Em busca do tempo perdido, se a gente considerar cada um dos sete volumes como um romance à parte. Inclusive, se alguém quiser me sugerir um nome, estou aceitando.
Quando peguei Os Demônios pra ler, pensei: “esse aqui não pode ser tão bom como os outros”. E aí, mais uma vez, uma cacetada na minha cara. Mais um livro que, depois do fim, eu fico estatelada no chão pensando em quando vou encontrar outro livro tão bom.
Li muitas resenhas na internet falando sobre a primeira parte do livro ser arrastada, mas não concordo. Dostoiévski usa ironia, até uma certa dose de humor e, como de costume, ótimos diálogos. Como resultado, a primeira parte prepara uma situação que se desenrolará nas outras duas partes.
O que se passa é o seguinte: Varvara Pietrovna e Stiepan Trofímovitch são amigos/affairs de longa data. A relação é claramente desigual porque a generala Varvara sobe em cima de Stiepan e faz o que quer com ele. Ambos vivem em uma cidadezinha pacata da Rússia do século XIX e têm dos filhos que moravam longe, mas que estão a caminho da cidade.
Um deles é o belo e enigmático Nikolai Stravogin, que quatro anos antes, em uma passagem rápida pela cidade, causou furor – com direito a mordidas em orelhas e ofensas à sociedade. Nikolai tem uma espécie de força atrativa em sua figura e, por conta disso, os outros personagens principais da obra giram em torno dele. Depois que causou na Rússia, foi passear um tempo no exterior e, na Suíça, reencontrou uma família amiga (e, mais importante para Varvara, rica!). Bom, o jovem Stavrogin se engraça com Lizavieta e a jovem fica caidinha por ele. Ao mesmo tempo, porém, rolam boatos de que na mesma viagem Nikolai também teria se envolvido com Dária Pavlovna, filha de um falecido criado de Varvara e protegida desta. Tudo chega ao ouvido da generala enquanto todas essas figuras estão de volta ou voltando para a pacata cidadezinha. Só que tem ainda mais: além de todo burburinho relacionado com as duas moças, há ainda uma outra fofoca envolvendo a figura de Nikolai. Há quem diga que Nikolai teria se casado clandestinamente com Mária Lebiádkina, uma coxa pobre da cidade e cujo irmão é um bêbado perdido que bate nela.
Também estão na cidade Chátov e Kiríllov. Ambos são figuras bem mais sombrias (e, a meu ver, os dois melhores personagens do romance). Chátov e Kiríllov passaram uma temporada morando nos EUA e vivendo com os proletários. O que aconteceu nessa experiência é que ambas as teorias dos dois se aprofundaram. Chátov, que é irmão de Dária, voltou com ideias completamente diferentes, eslavófilo e acreditando em Deus (ou pelo menos tentando acreditar); Kiríllov volta com ideais fortemente niilistas e tem a intenção de se matar como forma de reafirmar seu arbítrio e a inexistência de deus (se deus não existe, ele diz, então eu sou meu próprio deus e morrer e viver deveriam ser coisas indiferentes).
Por fim, aparece Piotr Verkhovienski, filho de Stiepan Trofímovitch. Piotr é um jovem com ideias à esquerda e revolucionárias. Piotr tem ideias muito firmes e se inspira em outra figura do romance, Chigálliov. Para ambos, a sociedade deveria ser dividida em duas partes: 1/10 detém todo o poder e manda no resto da população – que, para manter a “causa”, precisa se autovigiar e delatar. Não há espaço para talentos, não há espaço para debate de ideias. Como Piotr diz, ele não é bem um político, mas um patife. Bom, Piotr está voltando para a cidade com um objetivo: ele quer espalhar panfletos revolucionários e instalar o caos para que as estruturas sociais se enfraqueçam e outro regime política possa vir a tomar o poder. Chátov, Kiríllov, Piotr e Nikolai – cada um sendo quase como que a encarnação de uma ideia – já foram parte de um mesmo grupo e tudo que Piotr planeja envolve essas figuras.
Todos esses personagens sobre os quais falei são apenas os mais centrais. De onde vieram esses, há muito mais! Agora vocês peguem todas essas pessoas, coloquem elas na mesma cidadezinha e acrescentem uma dose da maravilhosa escrita de Dostoiévski. Está feita a obra prima e está armado o barraco (aquele barraquinho bem escrito que Dostoiévski faz como ninguém). As ideias políticas e filosóficas e as questões sociais da Rússia da segunda metade do século XIX estão aqui, neste romance. Dostoiévski captou tão bem o que estava se passando à época que, acredito eu, a semelhança que muita gente vê entre Piotr e Stálin não é nada mais do que resultado de uma sensibilidade ímpar em perceber como uma ideia degringola em pesadelo e autoritarismo quando regida por uma pessoa como Piotr.
Isso tudo só pra situar vocês!
Enfim, leiam. Vamos nos estatelar no chão juntos e agradecer aos céus por terem nos dados os romances de Dostoiévski.